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ENTREVISTAS DA 2ª
Para a pesquisadora da USP, o pluriculturalismo é trunfo do Brasil para o próximo século, uma vez que os países europeus não
convivem bem com o tema da mestiçagem
Intolerância é legado colonial, afirma Laura de Mello e Souza
MARCOS FLAMÍNIO PERES
da Redação
O Brasil completa 500 anos desde o Descobrimento com dois legados opostos da colonização: o
pluriculturalismo e a intolerância.
É o que afirma Laura de Mello e
Souza, professora de história moderna da Universidade de São
Paulo e especialista na sociedade
mineira do século 18.
Para a historiadora, o pluriculturalismo é um trunfo de que
poucas nações podem se gabar de
possuir hoje. Sua origem está na
mistura entre culturas e etnias tão
díspares que marcaram o passado
colonial do Brasil. Por outro lado,
a colonização também nos legou
um "vício de origem", que é a intolerância: "O Brasil é um país
que discrimina o tempo todo".
Em entrevista à Folha, a historiadora fala também da importância da "história das mentalidades" para rever interpretações
consagradas do Brasil, como as de
Gilberto Freyre e Caio Prado Jr.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Folha - Faz sentido comemorar
os 500 anos do Descobrimento?
Laura de Mello e Souza - Há aspectos importantes a comemorar,
mas também um legado horrível,
que é formado por tudo o que não
fizemos e que nos deixa angustiados. Passados 500 anos, ainda
mantemos uma estrutura iníqua,
que tem a ver com a forma como
se processou a colonização. Mas
não é só isso. Somos responsáveis
pelos nossos atos. De fato, é um
preço muito alto que se pagou pela escravidão. Mas faz mais de
cem anos que ela foi abolida e ainda não conseguimos resolver a
questão da desigualdade.
O Brasil tem um cacife importante para entrar no século 21: o
pluriculturalismo, que será uma
realidade do próximo século. E
países europeus, como a França,
têm dificuldade em conviver com
ele. O Brasil, porém, não é uma
democracia racial. É um país desigual. Mas somos um país mestiço,
e isso é importante. Mestiçagem
não só étnica, mas cultural.
Folha - De que modo a "história das mentalidades" pode contribuir para uma nova interpretação do Brasil?
Mello e Souza - Ela é um instrumento de análise muito importante, por mostrar por que certos
padrões de comportamento permanecem. Um desses traços é a
intolerância. O Império português foi feito de tolerância e intolerância. O Brasil não é apenas
uma democracia racial, como dizia Gilberto Freyre, mas um país
que discrimina o tempo todo.
Folha - Os limites tênues entre
ordem e desordem são um traço
constitutivo do Brasil?
Mello e Souza - Acho que sim.
Essa é uma das características
mais marcantes de nossa história:
como é que migramos imperceptivelmente da norma para a negação da ordem e da ordem para o
conflito. Isso tem a ver com as
fronteiras entre público e privado.
Folha - Essa indistinção entre
ordem e desordem explicaria a
figura do "malandro"?
Mello e Souza - A malandragem sempre foi algo mais ideológico do que real. Existe no Brasil
uma ideologia da vadiagem, que
foi construída de cima para baixo
e significa uma total intolerância e
incapacidade para entender o povo brasileiro. Seja pela recusa da
mestiçagem, das formas alternativas de trabalho, pela recusa de
culturas diferentes da européia,
tudo acabou sendo colocado no
bolsão que se chamou vadiagem.
Folha - Como se desenvolveu a
resistência à opressão da norma
do colonizador português?
Mello e Souza - De várias formas, desde a violência até a malandragem, mas a "boa" malandragem. Os escravos frequentemente driblavam a repressão e inventavam uma forma malandra,
no bom sentido, de conviver com
a escravidão. Pode-se conseguir,
com esperteza, enfrentar a ordem
em situações desvantajosas.
O que mais assusta, porém, é
que a sociedade brasileira seja
uma sociedade violenta, de uma
violência que nem sempre é aparente. Uma sociedade dessa natureza pode ser negada desde a forma mais radical, que é pelo enfrentamento, até pelo estratagema. Isso acontece o tempo todo.
Folha - Diferentemente dos
EUA, a colonização do Brasil se
deu pela presença quase só de
homens. Mulher e filhos ficavam
em Portugal. Como isso influenciou a formação do país?
Mello e Souza - A ausência da
mulher no Brasil Colônia é uma
questão mal colocada. De fato,
muitas famílias se constituíam,
com negras, índias, com o que havia. Uma das famílias mais ilustres da Colônia, a Cavalcante, descende de uma índia.
Mas há o lado oposto dessa
questão, que tem a ver com a negação da mestiçagem. Como havia pouca mulher branca, as
uniões que se fizeram foram ilícitas. Em nosso inconsciente, gostaríamos todos de descender de famílias brancas. E o fato é que não
descendemos. As famílias paulistas ilustres pretendiam descender
de princesas indígenas, e mesmo
quem tinha sinais evidentes de
mestiçagem negava a ascendência
escrava e enaltecia a indígena.
Folha - A tensão entre barbárie e civilização é um fardo que
o Brasil carrega em sua história?
Mello e Souza - Sim, sobretudo
porque em grande parte as elites
assumiram esse caráter. A vertigem do Brasil é que a barbárie pode engolir a civilização. A idéia de
que o sertão vai virar mar e o mar
vai virar sertão é sempre posta, recriada pelas elites, que negam
suas origens. Poucos países têm
uma elite tão predadora como a
brasileira. Não adianta dizer que
são os outros. A elite somos nós. E
vamos entrar no século 21 com essa questão em aberto.
Folha - Mas com a possibilidade de ser resolvida?
Mello e Souza - Acho que sim.
Caso contrário, nada terá tido
sentido. Mas depende de um esforço muito grande. Eu acho que
o ensinamento de Gilberto Freyre
é o de que a mestiçagem é um valor, um acervo cultural. Há vários
campos em que a cultura brasileira é criativa. Não é que o povo seja
ruim e o país, bom. O povo é bom,
mas os que fazem o país -os que
lêem, escrevem, e não me refiro
apenas à elite econômica- não
têm feito o que podem.
Folha - Por que a sra. diz em
"Norma e Conflito" que a "elipse" -um modo de nunca nomear diretamente os problemas- é um traço da constituição mental brasileira?
Mello e Souza - Acho que a
gente não enfrenta as coisas, tanto
para o bem quanto para o mal. No
mundo hispânico, me parece que
os embates são muito mais abertos, enquanto, no mundo lusitano, são sempre meio "na maciota". Há uma dificuldade de enfrentamento que é típica dessa
cultura. Temos essa tradição de
coisas não ditas, de meios-tons.
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