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Carneiro da Cunha discute papel dos índios
RENATO SZTUTMAN
especial para a Folha
Hoje professora da Universidade de Chicago, Manuela Carneiro
da Cunha não é historiadora, mas
antropóloga.
Suas obras e a de outros antropólogos de sua geração, no entanto, ajudaram a rever um ponto
importante da história do Brasil: o
papel dos índios. Mostrou-se que
as sociedades indígenas são agentes, não meras vítimas de um destino traçado pelo colonizador.
Já em 1854, na "História Geral
do Brasil", Francisco Adolfo de
Varnhagen dizia que os índios
não tinham história, só etnografia
-visão que atravessou o século
19, instalou-se no 20 e só mudou
recentemente. Para falar da pouco
conhecida história indígena, Carneiro da Cunha, professora aposentada da USP, deu entrevista à
Folha, em sua casa, em São Paulo.
Folha - O presidente da Funai,
Carlos Frederico Marés, declarou que os índios nada têm a comemorar e que a Funai não participará das festas dos 500 anos.
Carneiro da Cunha - Eu acho
que é isso mesmo. Não há muito o
que comemorar. Mas o simples
fato de se dizer isso já é algo digno
de ser comemorado.
Folha - No México e em países
andinos, a identidade nacional
e a indígena são fortemente imbricadas. No Brasil, essa ligação
é mais frouxa. Por quê?
Carneiro da Cunha - As sociedades das terras baixas sempre foram consideradas, em relação às
chamadas altas civilizações, como
de "segunda linha". Aqui não havia sociedades organizadas de
maneira hierárquica como nos
Andes e, portanto, tornava-se
mais difícil para os colonizadores
valorizá-las. No México e nos Andes, houve uma possibilidade de
transferência dos mesmos valores. No Brasil, era muito mais difícil se vangloriar desse indianismo.
Ele certamente representou uma
reviravolta nos valores, mas que
não foi tão imediata.
Folha - Como fica o lugar dos
índios na história nacional?
Carneiro da Cunha - Na "História Geral do Brasil", de Varnhagen, os índios não fazem parte da
história, são um "pano de fundo".
O Código Civil de 1916, por exemplo, não os incluía. Daí a introdução, de última hora, da noção de
tutela, a mesma idéia de que os índios não participam da história
nem da sociedade.
Folha - A obra de Gilberto
Freyre trouxe alguma contribuição em relação a essas visões?
Carneiro da Cunha - Talvez me
engane, mas até hoje não identifiquei nele qualquer conhecimento
aprofundado do que eram as sociedades indígenas. Ele é genérico, não sei que fontes usa para
configurar o índio. A agenda dele
se voltava para os negros. Temos
nesse autor uma espécie de mito,
o mito do enraizamento.
Folha - Como foi possível reintegrar as sociedades indígenas
à historiografia do país?
Carneiro da Cunha - Darcy Ribeiro foi um dos primeiros a chamar atenção para essa recuperação. De certa forma, o que nós
tentamos fazer no Núcleo de História Indígena e do Indigenismo
da USP foi isso. Pretendíamos
chamar atenção não só para a presença dos índios na história do
Brasil, mas também para a participação nela segundo uma lógica
própria. Tentamos ver de fora e
por dentro, como os planos se articulam, como fatos são reapropriados, influenciados e interpretados pelas sociedades indígenas.
Folha - Quais são as contribuições dos estudos de história indígena?
Carneiro da Cunha - Quando
pensamos o núcleo, havia um
programa de documentação de
fontes para a história indígena.
Instrumentalizamos a pesquisa
histórica para ampliar a discussão
sobre os direitos dos índios. Um
exemplo é o estudo de Beatriz
Góis Dantas sobre os xocós, de
Sergipe. Ela estudou o percurso
histórico deles no momento em
que disputavam uma área numa
ilha do rio São Francisco, num
conflito judicial. Beatriz inventariou a representação histórica sobre eles e mostrou que tinham direitos históricos sobre a terra.
Folha - A idéia de que as sociedades indígenas são agentes de
sua história se choca com o
ideal de "sociedades frias" proposto por Claude Lévi-Strauss?
Carneiro da Cunha - O que Lévi-Strauss queria dizer com sociedades frias é que elas não valorizam a história e que se pensam na
história como reproduzindo uma
forma idêntica. As sociedades
quentes são as que vêem a história
como motor explicativo. Mas ele
enfatizou que não há sociedades
absolutamente frias ou quentes.
Acho perfeitamente possível participar da história e, no entanto,
pensar que se está reproduzindo
uma ordem dada de antemão.
Folha - Bons resultados nas últimas décadas derrubaram as
previsões de que as populações
indígenas estavam fadadas ao
extermínio. Você é otimista?
Carneiro da Cunha - Uma razão é segura: toda previsão dá errado. A mobilização indígena em
torno da questão da diversidade
biológica e dos conhecimentos
tradicionais é nova e importante.
Devemos nos deixar surpreender.
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