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São Paulo, quinta-feira, 20 de março de 2003

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JANIO DE FREITAS

As armas da mentira

A imaginação, algo obsessiva, das aflições por que passam tantas pessoas no Iraque, à espera de que os mistérios do acaso decidam, de um momento para outro, o que acontecerá aos seus filhos, às suas famílias, à dimensão já desumana da sua tragédia, tem um equivalente em intensidade. É a repugnância provocada pelo cinismo com que certos tipos exibem a sua sanha facinorosa, disfarçada em defesa responsável de valores primordiais.
Os Estados Unidos e a Inglaterra não vão atacar Saddam Hussein. Vão atacar um país e seu povo. Assim como as forças de Hitler não atacaram Churchill, mas a Inglaterra e os ingleses. E americanos, ingleses e soviéticos não atacaram Hitler, mas a Alemanha e os alemães. O que distingue a situação de hoje e a da Segunda Guerra Mundial são as respectivas causas. As guerras distinguem-se, antes de tudo, pelas causas que envolvem.
Quase três centenas de inspetores da ONU não encontraram as armas cuja posse fora proibida ao Iraque. Bush e Tony Blair os contestaram, afirmando possuir provas. As do primeiro foram fotos de caminhões e galpões vistos de cima, sem indício do que contivessem e feitas em ocasião imprecisa. Blair foi ainda mais longe, apresentando ao Parlamento um relatório que logo se descobriu ser a cópia descarada de um trabalho acadêmico esquecido.
O primeiro-ministro alemão, Gerhard Schröder, reagiu ao ultimato de Bush a Hussein com sua precisa síntese: "Para mim, a questão era e é esta: o nível de ameaça representado pelo ditador Hussein justifica uma guerra que provocará a morte de milhares de homens, mulheres e crianças inocentes? Para mim, a resposta era e é esta: não".
É isso: com ou sem armas proibidas, Hussein não emitiu, desde a Guerra do Golfo há 12 anos, nada interpretável como ameaça real. O longo bloqueio econômico ao Iraque retirou-lhe, além do mais, os recursos exigidos pelo fortalecimento de suas forças armadas.
Apesar da falta de provas das armas proibidas e ainda de ameaças reais, ambas são as única pretensas razões invocadas por Bush e Blair para atacar o Iraque. Logo, em todos os sentidos jurídicos e morais, Estados Unidos e Inglaterra vão fazer o ataque com base no que, por tudo o que é sabido de fato, até agora não passa de mentira.
Documentos provenientes de arquivos oficiais americanos revelaram, há pouco mais de um ano, que jamais houve o ataque a um navio da marinha americana no golfo de Tonkin. O episódio, que deu motivo ao ataque dos Estados Unidos ao Vietnã do Norte, foi forjado em conjunto pelos Departamentos de Defesa e de Estado e pela CIA, para criar a aparente justificativa ao ataque desejado.
No caso do Iraque, emerge uma pergunta: por que a urgência de Bush, a ponto de lançar um ultimato até mais agressivo contra a ONU do que contra o já condenado Iraque? A resposta talvez esteja em outra pergunta: e se os inspetores da ONU, podendo continuar suas minuciosas buscas, não encontrassem mesmo armas proibidas, o que seria do Bush que já não conseguira prender Bin Laden?


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