São Paulo, sábado, 20 de março de 2004

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ESQUERDA INSATISFEITA

Nobel, que lança novo romance, diz à Folha ver "mau sinal" no governo e ataca demissão de Cristovam

Saramago critica "neoliberalismo" de Lula

CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Depois do já célebre "até aqui cheguei", que usou para romper laços com a Cuba de Fidel Castro, no ano passado, José Saramago parece seguir o mesmo caminho com o Brasil de Lula.
"Duvido que o povo esteja vencendo no Brasil. É muito mau sinal que ministros progressistas tenham sido substituídos por neoliberais que só conhecem uma receita econômica, a do FMI", escreveu o Nobel de Literatura, em entrevista à Folha por e-mail.
Saramago respondia a uma pergunta sobre seu novo romance, "Ensaio Sobre a Lucidez", que será lançado nesta semana no Brasil pela Companhia das Letras.
No livro, de forte carga política, o escritor português de 81 anos conta a história de uma eleição em que 83% dos eleitores da capital de um país (sem nome) resolvem votar em branco.
Assustados com a reação, os dirigentes do país decidem decretar estado de sítio e mudar a sede do governo de cidade (ao saírem da capital, os políticos se dividem por várias ruas, de modo que, vistos do ar, formariam "uma enorme estrela de 27 braços").
Indagado sobre eventual relação dessa imagem com o símbolo do partido brasileiro, Saramago respondeu com outra pergunta: "Quanto braços tem a estrela do PT? A minha tem 27".
O governo, por coincidência, já teve 27 ministérios (hoje são 25). E justamente a reforma ministerial de janeiro deste ano foi outro alvo dos torpedos do Nobel.
"Tenho de dizer que me chocou profundamente que uma pessoa com a envergadura moral e intelectual de Cristovam Buarque tenha sido demitida por telefone. Foi um gesto feio", afirmou.
As críticas do escritor, no novo romance, são mais gerais, dirigidas ao "modelos vigente" de democracia e de Estado, o que é expresso pela vultosa votação em branco dos eleitores. Saramago afirmou à Folha: "Recomendo o voto em branco a todos quantos pensam que o sistema democrático não cumpre suas obrigações".
Ele defende que já acabaram com "a idéia de uma democracia econômica" e que "fizeram da democracia cultural uma caricatura" e pede que "ao menos deixem-nos ficar com a democracia política". "Ela pode ser o instrumento para a regeneração necessária. Usemo-la na sua totalidade, usemo-la tal como é, até ao fundo. O voto em branco estava ali à espera, o seu uso era considerado simplesmente anedótico, mas a realidade poderá vir a ser outra. É questão de experimentar."
O escritor diz que nunca votou em branco, mas que "nunca é tarde para começar".
Tido como um dos últimos grandes defensores do comunismo, ele nega que com essas opiniões tenha "virado a casaca". "Não troquei o comunismo pelo anarquismo, simplesmente decidi passar a designar-me "comunista libertário". Ainda que a alguns isto possa parecer uma contradição em termos, não o é: num caso como no outro a extinção do Estado era a meta a atingir."
"Ensaio Sobre a Lucidez" não questiona apenas os políticos. Distribui pontadas também para a mídia. O escritor, que já trabalhou como jornalista, diz que isso reflete seu "protesto contra o concubinato entre os políticos e os meios de comunicação social".
Por essas e outras, Saramago diz crer que "Ensaio Sobre a Lucidez" será seu livro mais polêmico.
"Todo o sistema vai se sentir questionado", opina. "Não escrevo para os partidos nem para os políticos, escrevo, sim, para aqueles que julgam sinceramente que vivem em democracia e a quem não se permite que descubram por si mesmos que uma democracia autêntica seria necessariamente outra coisa."


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