São Paulo, domingo, 21 de março de 2004

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ELIO GASPARI

Jango, 40 anos de um mito

Em 1963, quando o presidente João Goulart visitou São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, um garoto de sete anos viu-o, de longe. Com o tempo, o menino pensou que essa lembrança fosse uma alucinação. Transformado em estudante de história, o garoto passou a ver em Jango um governante que tentou reformar o Brasil e foi deposto por um satânico conluio de militares, conservadores e americanos. Ele achava isso em 1977, quando batalhava no Partido Comunista do Brasil e acabou enquadrado na Lei de Segurança Nacional, acusado de querer recriar a UNE. Em 2000, numa entrevista, chamou Goulart de inexperiente e "banana". Arrependeu-se da expressão e foi estudá-lo melhor. O presidente e o garoto reencontraram-se.
Deve chegar amanhã às livrarias "Jango - Um Perfil (1945-1964)", de Marco Antonio Villa. É o 15º livro do professor, que já escreveu sobre Canudos e a respeito da seca nordestina. Sobrou pouca coisa do que ele achava do presidente deposto em 1964. Três anos de pesquisas produziram uma narrativa bem encadeada dos acontecimentos que vão do fim da ditadura de Vargas ao início da ditadura dos militares. (Interessa registrar que Villa colaborou com o signatário na verificação das citações e na atenta leitura dos livros que publicou nos últimos anos.) Mesmo quem não esteja a fim de concordar com o que ele diz, pode conhecer melhor o período lendo seu livro. Afora isso, são muitas as surpresas.
Uma: "Falar de Jango é falar das reformas de base. (...) O mais surpreendente é que, em momento algum de seu governo, conseguiu construir uma proposta coerente de transformações (mais que necessárias)". Villa mostra que Goulart só enumerou essas reformas, com algum grau de definição, no dia 15 de março de 1964. Ainda assim, não produziu projetos legislativos que permitam avaliar o alcance de suas intenções. O projeto de reforma agrária era inviável por inconstitucional. Segundo o deputado Doutel de Andrade, leal amigo de Jango, era inconstitucional para ser inviável.
Outra: "Os 31 meses da Presidência de João Goulart foram marcados pela absoluta falta de plano de governo, de um rumo coerente a ser seguido. (...) Nomeou excelentes auxiliares (como San Tiago Dantas e Celso Furtado), mas impediu que pudessem exercer plenamente suas funções, como se temesse demonstrar seu desconhecimento dos grandes problemas nacionais".
O João Goulart que sai do livro não é admirável, mas aqui e ali aparece um bom sujeito. Como diz Villa: "Ficou a lenda de um presidente democrata, reformista, que foi derrubado porque queria enfrentar os privilegiados. Definitivamente, Jango foi um homem de sorte".

Cotas (ou Abolição): um perigo público

Contribuindo para elevar (ou baixar) o nível da discussão em torno da política de Lula em defesa das cotas para favorecer a entrada nas universidades públicas dos negros e pobres aprovados no vestibular, transcrevem-se adiante algumas opiniões de brasileiros clarividentes que, no século 19, opunham-se ao flagelo da libertação dos negros.
No século 21 é impossível achar alguém que seja contra o acesso dos negros ao andar de cima. Tudo é uma questão de tempo, prudência e respeito à evolução da sociedade.
No século 19 nenhum porta-voz da casa-grande era favorável à escravidão, muito menos racista. Tratava-se, diziam, de uma questão de critério e de oportunidade. As leis do Ventre Livre, dos Sexagenários e a própria libertação dos escravos eram apresentadas como uma ameaça à segurança e à felicidade dos negros.
2004- O problema não está na falta de negros nas universidades, mas na má qualidade do ensino básico e na complexidade do problema social brasileiro.
Século 19- Fala o deputado Dias Carneiro: "Não devíamos, pois, fazer questão do tempo, porque ele é indispensável em questões desta ordem, que se prendem aos interesses sociais, por múltiplas relações; questões complexas, que se devem resolver em todas as suas partes, e só o tempo é capaz de produzir uma solução harmônica".
2004- As cotas são prejudiciais aos negros. Estigmatizam os estudantes que se beneficiam desse sistema.
19- O romancista José de Alencar chamava a Lei do Ventre Livre de "Lei de Herodes". Os recém-nascidos seriam abandonados pelas mães.
2004: As cotas levarão a questão racial brasileira para dentro das universidades.
19- Nas palavras do barão de Cotegipe: "Brincam com fogo, os tais negrófilos".
Ou na voz do deputado liberal Felício dos Santos, em 1884: "Não preciso dizer-vos que detesto a escravidão, como a detestam todos os brasileiros, todos os povos civilizados. (...) Ninguém no Brasil sustenta a escravidão pela escravidão, mas não há um só brasileiro que não se oponha aos perigos e às calamidades da desorganização do atual sistema de trabalho".
Finalmente, a lembrança do Visconde de Sinimbu, defensor perpétuo dos negros brasileiros e de acordo com o que supunha ser o interesse dos brancos:
"A escravidão é conveniente, mesmo em bem ao escravo".

O Imposto Sindical vai bem, obrigado

A nobiliarquia trabalhista nacional continua repetindo a patranha segundo a qual a reforma sindical "acaba" com o Imposto Sindical, a contribuição que cada trabalhador dá (anual e compulsoriamente) de um dia de seu trabalho para o coquetel de confederações, federações e sindicatos. São R$ 437 milhões anuais.
A informação é mentirosa. A reforma sindical substitui esse imposto por outro, pior. Para os trabalhadores da iniciativa privada, na melhor das hipóteses, a mordida ficará do mesmo tamanho. Para os servidores públicos, é tunga na certa.
Reuniram-se em Luziânia (GO) representantes de 279 entidades do que se poderia chamar de esquerda da CUT, onde se inclui a área de influência do PSTU. Condenaram o projeto de reforma sindical gerado no Fórum Nacional do Trabalho.
Esses sindicatos pretendem organizar um 1º de Maio alternativo em diversas cidades do país.

O risco sardinha

Estão fritando o governor Henrique Meirelles. Erro. Presidente de Banco Central não se frita, explode-se. Esse tipo de funcionário é como as sardinhas portuguesas: fritas, valorizam-se.

Números agrestes

Recife, cidade governada por um petista, deu a Lula um índice de aprovação de 43%. O governo ficou com 23%, que foi a marca registrada na agonia do collorato. Nas demais regiões metropolitanas os números são semelhantes.
Lula começou seu governo na vizinhança dos 80%. Seu governo, com pouco mais de 50%. Metade do patrimônio foi-se embora.
Em São Paulo a rejeição a Marta Suplicy ultrapassou a de Paulo Maluf.

Eremildo, o idiota

Eremildo é um idiota, acredita em tudo o que o governo diz e vai a Brasília para propor a Lula a criação de um novo cargo na administração federal, o de Marcador-Geral. O lugar seria preenchido pelo tesoureiro do PT, doutor Delúbio Soares.
Numa entrevista ao repórter Ricardo Galhardo, o companheiro-captador, signatário da prestação de contas de Lula ao TSE, referiu-se à sua capacidade de marcar entrevistas na administração pública:
- Com burocrata de ministério? É só ligar e marcar para quatro, cinco dias depois.
O idiota explicará a Lula que, se Delúbio trabalhar quatro horas por dia marcando entrevistas para a choldra, acabam-se algumas das piores filas da vida nacional.

Grosseria

O PT Federal não aprende. Quando Lula visita um Estado, seus comissários comunicam a viagem aos senadores oposicionistas na véspera, com um aviso do tipo "para seu conhecimento".
Mais um pouco, acrescentam: "Não apareça por lá".

Agenda perdida

Lula pode ter uma idéia para a agenda do país, mas não sabe arrumar a sua. Já deu chá de cadeira nos presidentes do Egito e da Finlândia; no primeiro-ministro da Espanha e no povo de Campina Grande. Já interrompeu viagens ao exterior, antecipando sua partida da Líbia (onde chegou com duas horas e 20 minutos de atraso) e da África do Sul.
Com o presidente argentino Néstor Kirchner, superou-se. Desmarcou um compromisso dentro da própria casa. Na terça-feira, voou do Rio para Brasília e seu hóspede, avisado com antecedência, teve que encarar um churrasco (médio) numa casa de carnes do aterro do Flamengo.

Entrevista

Jefferson Péres

(72 anos, senador pelo PDT-AM)

-O senhor e o senador Pedro Simon foram bater à porta do Supremo Tribunal Federal para buscar o direito de a oposição criar Comissões Parlamentares de Inquérito. Não teria sido melhor brigar no plenário do Senado?
- No Senado, a briga continua. Nós fomos ao Supremo para defender a Constituição. O governo acaba de ratificar uma conduta que extingue o instituto da CPI. Isso nunca aconteceu na República. Estabeleceu-se que a minoria pode ter as assinaturas pedidas pela Constituição, mas a maioria pode se impor, bastando-lhe não indicar seus representantes na Comissão. Cria-se uma situação na qual a Constituição autoriza a minoria a gerar CPIs, mas o presidente da Casa, com o regimento, pode abortá-las. Não é a CPI que está em questão. É o direito da minoria de não ser afogada. Se essa monstruosidade prevalecer, o governo só permitirá CPIs para jardinagem e culinária. Sempre que lhe interessar o silêncio, amordaçará a minoria. Quem deve estar surpreso com tudo isso é o ex-presidente Fernando Collor. Se ele tivesse recorrido ao expediente usado pelo Planalto, não teria sido instalada a CPI que investigou seu governo. Collor não cerceou a minoria.
-O que o senhor acha que levou o governo de um partido nascido no meio operário do ABC paulista a preferir uma solução dessas?
- Faltaram a Lula e ao governo a ousadia e a percepção de que tinham mandato e apoio para mudar a política brasileira. Sua vitória teve um alcance jamais visto. Lula tinha mandato e apoio popular para encurralar e constranger a maioria fisiológica do Congresso. Se ele dissesse que não barganharia com o fisiologismo, a começar com o fisiologismo do seu próprio partido, os políticos e os interesses contrariados não reagiriam. O tamanho de sua vitória do PT acuou-os, mas Lula deixou-se chantagear. Ele perdeu o seu grande momento. Agora é tarde para ele.
-O que o senhor quer dizer com "é tarde"?
- O PT e Lula perderam o patrimônio ético que carregaram consigo por mais de 20 anos. Perderam também o apoio popular. Hoje, faltam-lhes as condições morais e políticas para fazer as mudanças que prometeram aos eleitores. Lula tornou-se refém do fisiologismo. Ele está a caminho da conclusão do primeiro terço de seu mandato. Passado o período de deslumbramento, durante o qual ele se mostrava como um Messias dos povos, aplaudido no Brasil e festejado no exterior, chegaram as vicissitudes da prática de governo. Governar um país do tamanho do Brasil, com suas complexidades, é uma tarefa difícil. Lula está confuso, perplexo, desorientado.

Novidade, o IGPPr
A curiosidade do repórter Jamildo Melo permitiu a criação de um indicador para a política brasileira.O IGPPr, ou Índice Geral de Promessas Presidenciais.
Melo contou: num discurso de 39 minutos, em Fortaleza, Lula fez sete promessas, a uma média (ou IGPPr) de 5m34s por promessa.
No IGPPr Aberto, prometeu 1 milhão de empregos, Sudene, transposição do rio São Francisco, uma ferrovia, uma rodovia e juros baixos. No IGPPr Expurgado, sem promessas velhas, anunciou que os gestores públicos prestarão contas de suas ações.


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