|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LANTERNA NA POPA
Reescrevendo a história...
ROBERTO CAMPOS
"Nosso único dever para com a
história é reescrevê-la", dizia
Oscar Wilde. Quando for reescrita a história econômica do
Brasil nos últimos 50 anos, várias coisas estranhas acontecerão. A política de autonomia
tecnológica em informática, dos
anos 70 e 80, aparecerá como
uma solene estupidez, pois significou uma taxação da inteligência e uma subvenção à burrice dos nacionalistas e à safadeza
de empresários cartoriais. Campanhas econômico-ideológicas,
como a do "petróleo é nosso",
deixarão de ser descritas como
uma marcha de patriotas esclarecidos para serem vistas como
uma procissão de fetichistas anti-higiênicos, capazes de transformar um líquido fedorento
num unguento sagrado. Foi
uma "passeata da anti-razão"
que criou sérias deformações
culturais, inclusive a propensão
funesta às "reservas de mercado".
A criação do monopólio estatal de 1953 foi um pecado contra
a lógica econômica. Precisamente nesse momento, o ministro da Fazenda, Oswaldo Aranha, mendigava um empréstimo de US$ 300 milhões ao Eximbank, para cobertura de importações correntes (inclusive de
petróleo). A ironia da situação
era flagrante: de um lado, o país
mendigava capitais de empréstimos que agravariam sua insolvência; de outro, pela proclamação do monopólio estatal, rejeitava capitais voluntários de risco. Ao invés de sócios complacentes (cuja fortuna dependeria
do êxito do país), preferíamos
credores implacáveis (que exigiriam pagamento, independentemente das crises internas). Esse absurdo ilogismo levou Eugene Black, presidente do Banco
Mundial, a interromper financiamentos ao Brasil durante
cerca de dez anos (com exceção
do projeto hidrelétrico de Furnas, financiado em 1958). Houve outros subprodutos desfavoráveis. Criou-se uma cultura de
"reserva de mercado", hostil ao
capitalismo competitivo. Surgiu
uma poderosa burguesia estatal
que, protegida da crítica e imune à concorrência, acumulou
privilégios abusivos em termos
de salários e aposentadorias.
Criou-se uma falsa identificação entre interesse da empresa e
interesse nacional, de sorte que
a crítica de gestão e a busca de
alternativas passaram a ser vistas como traição ou impatriotismo.
Vistos em retrospecto, os monopólios estatais de petróleo,
que se expandiram no Terceiro
Mundo nas décadas de 60 e 70,
longe de representarem um ativo estratégico, tornaram-se um
cacoete de países subdesenvolvidos, na América Latina, África e
Oriente Médio. Nenhum país rico ou estrategicamente importante, nem do Grupo dos 7 nem
da OCDE, mantém hoje monopólios estatais, o que significa
que os monopólios não são necessários nem para a riqueza
nem para a segurança estratégica.
Essas considerações me vêm à
mente ao perlustrar os últimos
relatórios da Petrossauro. Ao
contrário de suas congêneres
terceiro-mundistas, que são vacas-leiteiras dos respectivos Tesouros, a Petrossauro sempre foi
mesquinha no tratamento do
acionista majoritário. Tradicionalmente, a remuneração média anual do Tesouro, sob a forma de dividendos líquidos, não
chegou a 1% sobre o capital aplicado. Após a extinção de jure do
monopólio, em 1995 (ele continua sendo exercido de facto), e
em virtude da crítica de gestão e
da pressão do Tesouro falido, os
dividendos melhoraram um
pouco, "ma non troppo". Muito
mais generoso é o tratamento
dado pela Petrossauro à Fundação Petros, que representa patrimônio privado dos funcionários. A empresa é dessarte muito
mais um instituto de previdência, que trabalha para os funcionários, do que uma indústria lucrativa, que trabalha para os
acionistas. Aliás, é duvidoso que
a Petrossauro seja uma empresa
lucrativa. Lucro é o resultado
gerado em condições competitivas. No caso de monopólios, é
melhor falar em resultados.
Quanto à Petrossauro, se fosse
obrigada a pagar os variados
tributos que pagam as multinacionais aos países hospedeiros
-bônus de assinatura, royalties
polpudos, participação na produção, Imposto de Renda e de
Imposto de Importação-, teria
de registrar prejuízos constantes, pois é alto seu custo de produção e baixa sua eficiência,
quer medida em barris/dia por
empregado, quer em venda
anual por empregado.
Examinados os balanços de
1995 a 1998, verifica-se que o somatório dos dividendos ao Tesouro (pagos ou propostos) alcança R$ 827 milhões, enquanto
que as doações à Petros atingiram R$ 2,054 milhões. Considerando que o Tesouro representa
160 milhões de habitantes e vários milhões de contribuintes,
enquanto a burguesia do Estado
da Petrossauro é inferior a 40
mil pessoas, verifica-se que é o
contribuinte que está a serviço
da estatal, e não vice-versa.
Nota-se hoje no governo uma
perigosa tendência de postergação das privatizações, seja na
área de petróleo, seja na área financeira, seja na eletricidade. É
um erro grave, que põe em dúvida nosso sentido de urgência na
solução da crise e nossa percepção dos remédios necessários. A
privatização não é uma opção
acidental nem coisa postergável,
como pensam políticos irrealistas e burocratas corporativistas.
É uma imposição do realismo financeiro. Há duas tarefas de saneamento imprescindíveis. A
primeira consiste em deter o
"fluxo" do endividamento (o
objetivo mínimo seria estabilizar a relação endividamento/
PIB). Essa é a tarefa a ser cumprida pelo ajuste "fiscal". A segunda consiste em reduzir o "estoque" da dívida. Esse é o objetivo da reforma "patrimonial",
ou seja, a "privatização".
Não se deve subestimar a contribuição potencial da reforma
patrimonial para a solução de
nosso impasse financeiro. Tomemos um exemplo simplificado. Apesar da crise das Bolsas, a
venda do complexo Petrossauro-BR Distribuidora poderia gerar uma receita estimada em R$
20 bilhões. Considerando que a
rolagem da dívida está custando
ao Tesouro cerca de 40% ao ano,
uma redução do estoque em R$
20 bilhões representaria uma
economia a curto prazo de R$ 8
bilhões. Isso equivale a aproximadamente 40 anos dos dividendos pagos ao Tesouro pela
Petrossauro na média do período 1995-1998 (a média anual foi
de R$ 207 milhões).
Se aplicarmos o mesmo raciocínio à privatização de bancos
estatais e empresas de eletricidade, verificaremos que a solvência brasileira dificilmente
será restaurada pela simples reforma fiscal. Terá de ser complementada pela reforma patrimonial.
É perigosa complacência a atitude governamental de que a reforma fiscal é urgente, e a reforma patrimonial, postergável. É
dessas complacências e meias
medidas que se compõe nossa
lamentável, repetitiva e humilhante crise existencial.
Roberto Campos, 81, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado federal
pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna
na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).
Texto Anterior: Painel Próximo Texto: Jânio de Freitas: As cabeças postas ao vento Índice
|