São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 2004

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JANIO DE FREITAS

As vozes do povão

Os financiadores do desfile no Sambódromo não deviam ser os banqueiros do bicho. Tinham que ser os fabricantes de silicone.
A publicidade carioca diz que o desfile é "o maior espetáculo do mundo". Logo, o desfile é o maior, mais longo e talvez mais indiscutível anúncio de um produto no mundo todo. Anúncio e ao mesmo tempo prova, para quem quiser ver, das propriedades milagrosas do produto. O silicone é rival da mão de Deus. Com a fascinante qualidade adicional de que não se precisa ser usuário para gozar de seus milagres, podendo-se mesmo senti-los concretos, palpáveis.
Tanto se sabe das razões do silicone para introduzir-se em variados lugares quanto não se sabe das razões dos bicheiros para introduzir seu dinheiro no desfile. Certo é que essa dedicação esquisita é uma das criações dos tempos da ditadura que sobrevivem muito bem na meia democracia. O que não sobreviveu na escola de samba foi o samba de escola, contaminado desde aquela época, aliás muito apropriadamente, por uma infiltração do ritmo de marcha, tão mais próxima do gosto militar do que o samba. Se ainda fosse a marchinha, brejeira e sapeca, o samba não ficaria ofendido.
Se o samba de escola não sobreviveu é porque a escola de samba deixou de ser escola. Influência do MEC, talvez. Hoje é empreendimento. E povo em empreendimento está sempre por baixo. Povo, mesmo, nos desfiles apenas faz número, dá a conveniente idéia de dimensão. E como, no fundo, todos os anos trazem desfiles iguais, as apelações se tornaram o principal objetivo para tentar um mínimo de diferença. Mais nomes de fama que querem mais fama. Mais belezas de silicone que se valem do desfile como aquelas que se expõem nas vitrines de famosa rua de Hamburgo, em um "quem dá mais" de duplo sentido, que tanto se aplica aos possíveis pagadores como às que querem receber.
O dinheiro em massa e o silicone idem deram ao desfile a projeção enganosa de que ali, e só ali, estava o Carnaval. A afinidade entre Sambódromo e TV fez o cenário perfeito para o engano.
A conclusão foi geral: o Carnaval de rua morreu. Ou, com mesma veracidade e mais simplicidade, o Carnaval morreu. Os bailes notáveis, dos Artistas, do Glória, do Copa, do Municipal, sem falar nos vale-tudo, sumiram de uma vez só. As avenidas e praças ficaram com cara de feriado, não de Carnaval. Os bondes, que espalhavam o Carnaval por toda a cidade, já estavam levados por Lacerda. Músicas de Carnaval? O rock, o pop e que tais não davam brecha, com a força do suborno de programadores de rádio, o sempre recriminado e nunca reprimido jabá. O Carnaval morreu.
Não sei de onde vem, nem o que é, mas uma energia muito especial ou uma necessidade indefinível faz brotar Carnaval outra vez pela cidade toda. De uns poucos anos para cá, blocos incontáveis surgiram não se sabe de quê, cresceram e se multiplicaram, inundam ruas, praças, avenidas e, sobretudo, almas. TV, jornais e revistas só têm olhos -sempre- para Ipanema, Leblon, para a zona sul. Os seus blocos, quase todos muito divertidos, é que ganham reportagem. Mas onde o Carnaval se refaz, ou não seria Carnaval, é no povão. Aquele que inventou a escola de samba e o desfile.
O Carnaval estava morto, mas o carnavalesco, não. E talvez haja aí, haja na recriação espontânea do Carnaval a partir das suas raízes de povão, apesar de todas as circunstâncias contrárias, um significado instintivo ou uma mensagem popular que não restringe o seu sentido ao Carnaval.
Tanto faz olharmos para os campos ou para as cidades, parece que o ressurgir do Carnaval diz alguma coisa a respeito do que neles se passa de menos alegre.


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