São Paulo, quinta-feira, 22 de agosto de 2002

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CELSO PINTO

Dúvidas e fantasias sobre o Brasil

O Brasil virou a "bola da vez" do mercado internacional, em boa medida por herança argentina. As perdas dos investidores, financeiros e não-financeiros, na Argentina superaram qualquer previsão e qualquer modelo de risco. Foi um calote interno e externo; em empréstimos de maior risco e em créditos garantidos comerciais; atingiu quem capitalizou subsidiárias e quem deixou quebrar. O risco de o Brasil seguir a Argentina, na cabeça dos investidores, é o que basta para abandonar o país, a despeito de algumas boas notícias.
O paralelo com a Argentina, contudo, é um equívoco, por várias razões. A primeira delas é que, quando há uma crise de confiança externa e o regime é de câmbio fixo (Argentina) ou controlado (Brasil até 98), a situação tende a se agravar sem parar: as reservas somem, os juros disparam e a economia entra em colapso. Quando o câmbio é flutuante e o Banco Central o deixa flutuar, a crise externa provoca desvalorização, o que ajuda a reduzir a dependência externa. A economia se contrai, pela falta de crédito externo, mas o juro básico não precisa, necessariamente, subir.
Esta é a terceira crise cambial desde 99, e o ajuste já feito é impressionante. Todo mundo repete o bordão de que "o Brasil precisa de US$ 50 bilhões por ano", e aí está a vulnerabilidade externa. Não é bem assim. Em 98, auge do câmbio controlado, o Brasil precisou de US$ 63,4 bilhões (US$ 33,4 bilhões de déficit em conta corrente e US$ 30 bilhões de amortizações). Nos 12 meses encerrados em junho deste ano, as necessidades externas ficaram em US$ 48,2 bilhões (déficit em conta corrente de US$ 18,2 bilhões e amortizações de US$ 30 bilhões).
O choque da desvalorização deste ano pode produzir números surpreendentes em 2003. Se o superávit da balança comercial ficar perto de US$ 7 bilhões, o déficit em conta corrente pode cair para US$ 16 bilhões ou pouco mais. As amortizações estão calculadas em US$ 23,9 bilhões, mas estão superestimadas por razões que serão explicadas em seguida. A necessidade de recursos, portanto, ficaria em torno de US$ 39,9 bilhões ou menos, uma queda de 40% em relação a 1998.
Quem achar que um superávit na balança comercial de US$ 7 bilhões é otimista vai ficar surpreso ao descobrir, no final deste mês de agosto, que o superávit comercial, em 12 meses, já estará em torno de US$ 7 bilhões. É claro que parte do resultado se deu pela contração da economia, que, espera-se, terá melhor desempenho no próximo ano. No entanto, é preciso lembrar três coisas: a importação partirá de um patamar menor; o câmbio estimulou e estimula substituições de importações; e as exportações estão crescendo, apesar da deterioração da economia mundial.
O total de amortizações está superestimado por duas razões. A primeira é que, sem financiamentos externos para rolagem, as empresas estão sendo obrigadas a liquidar suas captações externas. Um banco calcula as liquidações em mais de US$ 2 bilhões. Ruim para as empresas, mas bom para as contas externas: somem dívida e, com ela, gastos com juros.
A segunda é que, com os papéis de empresas brasileiras com descontos de 60%, 70% ou mais, quem pode remete dólares e recompra dívida. É um ótimo negócio, mas, como não pode ser feito oficialmente, o dinheiro sai pela CC-5. De janeiro a julho, saíram US$ 3,8 bilhões pela CC-5. Uma parte desse dinheiro foi para recompra de dívida. Quanto? Em situação de crise semelhante, em 98 e 99, a redução da dívida por recompra constatada pelo BC chegou a US$ 16,2 bilhões.
Além disso, o BC anunciou que recomprou US$ 2,3 bilhões em títulos que venciam em 2003 e 2004. Se comprou os títulos com deságio médio de 60%, liquidou US$ 3,8 bilhões em dívida pública externa. Como as amortizações do governo central somam US$ 3,5 bilhões em 2003, é possível que não haja nada mais para rolar. Somando esse ganho com a redução privada, não é impossível supor que as necessidades de recursos, em 2003, caiam para uns US$ 35 bilhões.
Isso quer dizer que, se o Brasil não captar um único centavo de dólar até o final de 2003 (hipótese absurda), mas o próximo presidente mantiver o acordo com o FMI, as contas fecham. As reservas estão hoje em US$ 37 bilhões, dos quais US$ 19 bilhões disponíveis, pelos termos do acordo com o FMI. Em dinheiro novo entrarão mais US$ 30 bilhões do fundo (US$ 6 bilhões neste ano), US$ 7 bilhões entre Banco Mundial e BID, mais uma rolagem automática de US$ 8,9 bilhões em amortizações ao FMI (que não estão incluídos na conta de amortizações anterior).
Se for considerado que, num sistema de câmbio flutuante, rolagem de dívida privada é problema privado (como tem sido até agora), as amortizações e os juros da dívida externa pública, de hoje ao final de 2003, são uns US$ 12 bilhões, menos o que já foi recomprado. Ou seja, sobram muitos dólares.
Quer dizer, aceitar o acordo com o FMI significa garantir o fechamento das contas externas até o final de 2003 e, portanto, permite crescer um pouco mais, mesmo num cenário externo adverso. É claro que, quando o mercado tiver certeza disso, reabrirá linhas para o Brasil: os bancos estão sempre prontos para emprestar para quem não precisa.
Para atrapalhar, há uma aversão geral ao risco e uma piora do cenário externo. Mas os dados mostram que, enquanto o risco dos países emergentes, exceto Brasil, subiu 320 pontos desde março, melhor momento do ano, o do Brasil subiu 1.300 pontos. A aversão é, acima de tudo, ao Brasil, por dúvidas pertinentes e fantasias. Se as fantasias saírem de cena, a situação tenderá a se aliviar, apesar da conjuntura internacional difícil. O risco de a crise fugir de controle existe, mas, para isso, o futuro presidente precisará errar muito.

E-mail:
CelPinto@uol.com.br



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