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São Paulo, segunda-feira, 22 de setembro de 2003

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ENTREVISTA DA 2ª

FRANCISCO DE OLIVEIRA

Elite do sindicalismo nacional provocou a aproximação entre o PT e o PSDB e levou ao continuísmo

Nova classe social comanda governo Lula, diz sociólogo

José Nascimento/Folha Imagem
O sociólogo Francisco de Oliveira fala sobre a reedição de seu livro "Crítica à Razão Dualista', de 73


RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

A vanguarda do proletariado se tornou dona da banca.
Pode parecer o resultado de uma revolução socialista, mas, para o sociólogo Francisco de Oliveira, é a descrição da recente história do sindicalismo no país e a explicação para o comportamento conservador do governo Luiz Inácio Lula da Silva.
A elite do sindicalismo nacional, e por consequência o grupo dirigente do PT, passou a constituir uma nova classe social, defende o professor emérito de sociologia da USP, ao ocupar posições nos conselhos de administração das principais fontes de recursos para investimentos no país: o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e os fundos de pensão das empresas estatais.
A participação institucional dos trabalhadores na gestão desses fundos é anterior a Lula na Presidência. Não podendo ser acusado de inventar uma espécie de "aparelhamento" financeiro, o governo atual é menos causa que consequência do processo. A tese está no posfácio inédito à sua "Crítica à Razão Dualista", obra de 1973 que a Boitempo Editorial reedita agora (ler texto nesta página). "O Ornitorrinco" é o título do texto.
Descolando-se da representação dos interesses específicos dos trabalhadores, esses novos "gestores" também não podem ser caracterizados como empresários.
"Eles não são burgueses propriamente porque eles não têm a propriedade nem eles são gestores das empresas privadas. Eles estão no ponto crucial, onde o capital privado busca recursos para acumular. Esse ponto são os fundos estatais, de um lado, e os fundos institucionais, de outro."
Nova classe, com interesses específicos -a boa gestão financeira é o principal. "Eles foram indicados gestores desses fundos e influenciam o partido. O sr. Luiz Gushiken [ministro da Comunicação de Governo] é ligado a isso, como o [Ricardo] Berzoini [ministro da Previdência]."
"Eles estão defendendo interesses que são legítimos do ponto de vista deles", afirma. "Você vai ver o sujeito votando no Conselho do BNDES por um investimento que vai desempregar também."
Bicho estranho -mamífero, ovíparo e com bico de pato-, o ornitorrinco é a alegoria da sociedade brasileira atual, em que setores dinâmicos da economia se alimentam da miséria para funcionar, mas sem capacidade de se reproduzirem de forma ampliada.
A seguir, trechos da entrevista:
 
Folha - No "Ornitorrinco", o sr. cria uma teoria para explicar a mudança do PT e o comportamento do governo Lula. Como é que se dá esse processo?
Oliveira -
Isso se deu de forma bem prática, sem nenhuma teoria apriorística. Durante a ditadura, os militares inventaram os fundos de pensão de cada empresa estatal. Não havia isso antes de 64. Suponho que o Banco do Brasil sempre teve, porque sempre foi uma corporação muito forte. Depois, virou regra geral. Todas as empresas estatais constituíram seus fundos de Previdência privada. Pode pegar todos eles, todos têm origem em empresas estatais: Previ, Eletros, Petros, Portus, esse da Caixa Econômica, todos fundos de Previdência complementar.
Como foi feito? A ditadura fez assim: o funcionário bota R$ 1 e a empresa bota R$ 1. Veio a Constituinte de 88, que criou o FAT, o Fundo de Amparo ao Trabalhador. Esse FAT é a principal fonte de recursos do BNDES. Então, você tem duas coisas: a principal fonte de recursos para acumulação de capital a longo prazo no Brasil é o FAT, via BNDES, e a principal fonte de recursos para investimento patrimonial, não necessariamente investimento de capital, mas pode ser, é de trabalhadores. É por isso que eu disse: se um marciano saltar aqui, acha que este é um país socialista.
Aliás, numa intervenção no Senado, o [senador Aloizio] Mercadante se gaba disso. Diz que a Previ é um enorme sucesso porque os trabalhadores viraram donos da Siderúrgica Nacional, da Vale do Rio Doce e de importantes empreendimentos do país. Essas duas coisas foram criando uma casta de administradores que são funcionários, operários e sindicalistas das grandes empresas e das grandes centrais.

Folha - Que é a elite do sindicalismo brasileiro?
Oliveira -
Que é a elite do sindicalismo brasileiro. Quer dizer, o FAT é administrado pelo BNDES, existe um representante das centrais sindicais que se senta no Conselho do BNDES para poder dar palpite sobre o FAT. Foi se criando uma elite de sindicalistas, de operários, de funcionários, que são os gestores desses fundos.

Folha - Que o sr. defende serem uma nova classe social?
Oliveira -
É, é uma nova classe social.

Folha - Que não é nem burguesia, nem trabalhadores.
Oliveira -
Não, eles não são burgueses propriamente porque eles não têm a propriedade nem eles são gestores das empresas privadas. Eles estão no ponto crucial, onde o capital privado busca recursos para acumular. Esse ponto crucial são os fundos estatais, de um lado, e os fundos institucionais, de outro. Eles viraram administradores de fundos, eles são uma nova classe.

Folha - E dá para dizer que é natural esperar que essa elite fosse a mesma elite do PT, quer dizer, fossem os dirigentes do partido também?
Oliveira -
É natural devido à origem desses fundos. Eles são todos fundos de empresas. E de outro lado a Constituinte deu às centrais sindicais a representação na administração do FAT, na administração do Conselho de Administração do BNDES. É natural desse ponto de vista. Não é ideologicamente natural, mas era de se esperar que, como a CUT e as formações ligadas ao PT são a força principal, eles estivessem lá. Mas daria no mesmo se fosse a Força Sindical. No caso aí, o hábito faz o monge.
Eu desloco a discussão para além de coisas como traição ou o que quer que seja. Quero saber quais são os mecanismos estruturais que criam esses processos.

Folha - E como é que na prática isso explica o comportamento do governo, suas prioridades?
Oliveira -
Porque são interesses poderosos. Quando perguntaram ao primeiro-ministro da Inglaterra depois da Segunda Guerra -que era um trabalhista mesmo, não era nada nobre- o que ele ia fazer sobre o processo de descolonização, ele respondeu que não tinha sido eleito para liquidar o império. É mais ou menos essa a situação. Eles chegam lá e viram administradores de fundos e vão estar interessados em que esses fundos dêem certo, em que eles tenham rentabilidade, porque, como é fácil de explicar, o que está em jogo é a aposentadoria deles, essa aposentadoria complementar. Então, eles estão interessados em investir nos empreendimentos capitalistas mais importantes.
Como é que isso passou para o PT? O PT historicamente vem de três forças, uma das quais foi o sindicalismo, a outra foram bases da igreja e a terceira os deserdados da esquerda que se juntaram cá no PT. Ora, a esquerda vinda da Igreja Católica está grandemente liquidada dentro do PT. Não tem mais nenhuma expressão, foi posta de lado, mesmo os evangélicos, de entrada mais recente, também estão sendo postos de lado. Os que não concordam são postos de lado. A fração sindicalista ganhou predominância dentro do PT e fundiu-se com a fração chamada de origem política propriamente.
Fundiu-se por quê? Fundiu-se pelo velho interesse burocrático, sem sentido pejorativo. O PT é hoje, e já há algum tempo, a maior máquina partidária deste país. Dizendo em jargão mais banal: tem interesses a defender.
Eles foram indicados gestores desses fundos e influenciam o partido. O conhecido sr. Luiz Gushiken é ligado a isso, como o Berzoini. Eles estão defendendo interesses que são legítimos do ponto de vista deles. Não vão fazer nada além do que a representação que os trabalhadores lhes deram, obrigam-nos a fazer. Só que aí eles se descolam. Você vai ver o sujeito votando no Conselho do BNDES por um investimento que vai desempregar também.
Então, o argumento do Mercadante, numa intervenção que ele fez no Senado, de que isso modifica a relação de capital e trabalho... Ou esse senador não aprendeu nada e precisa voltar à escola ou ele está mistificando. Não muda a relação capital-trabalho coisíssima nenhuma. Os novos proprietários tornam-se capitalistas e vão empregar de novo trabalhadores, mesma relação. Mas isso mudou o caráter ideológico porque há interesses concretos a defender.

Folha - Sobre esse caráter ideológico, o sr. faz um paralelo entre PSDB e PT e entre as universidades PUC-Rio e FGV de São Paulo. Qual é a relação?
Oliveira -
O que são os expoentes maiores do PSDB? De um lado você encontra concretamente gente que passou do aparelho de Estado para o sistema financeiro. Sem muita explicação teórica: Edmar Bacha virou banqueiro, Pérsio Arida virou banqueiro, os Mendonça de Barros viraram banqueiros, até João Sayad tinha sido banqueiro até pouco tempo atrás. Banqueiro é uma expressão máxima, mas, todos eles, de alguma maneira entraram para o sistema financeiro.
Por quê? Porque, à semelhança dos que simetricamente estão do outro lado, eles conhecem o caminho das pedras também e eles têm relações profundas com o Estado, com o governo, têm interesses mesclados e fazem uma espécie de outra metade da laranja. Podem pensar que estão ideologicamente opostos, mas, do ponto de vista real de seus objetivos e interesses claros, são a mesma coisa.

Folha - Os petistas e os tucanos?
Oliveira -
É a mesma coisa. Eles se sentem parte do mesmo jogo. Eles se sentem fazendo parte dos mesmos grupos de interesse. É forte, não é uma coisa banal.
Eu usei no "Ornitorrinco", só não dei o nome, mas todo mundo reconhecerá, esse sr. Delúbio Soares [secretário de Finanças do PT, ex-representante da CUT no conselho de administração do FAT no BNDES]. Esse rapaz era um metalúrgico. Foi a Folha que noticiou, e eu tomei a notícia daí, que o aniversário dele foi comemorado numa fazenda em Goiás, numa festa de arromba, e a reportagem contou 18 jatinhos na tal fazenda. Isso é trabalhador? Ou estamos enganados... Eles se sentem parte do mesmo grupo social, dos mesmos interesses e é por isso que a política brasileira está nesse impasse. Todo mundo é situação.

Folha - A importância desses sujeitos é que administram esses recursos? São os principais recursos do país?
Oliveira -
São. O FAT, de um lado, na acumulação de capital, no financiamento da acumulação de longo prazo, e os fundos de Previdência são os principais investidores institucionais. Todas as privatizações feitas desde o [ex-presidente] Fernando Collor foram decididas pela entrada de um fundo de Previdência vindo das estatais.
Quando o Fernando Henrique quis ferrar com o Antônio Ermírio de Moraes, por razões até hoje mal explicadas, na compra da Vale do Rio Doce, ele e o gordo sinistro, aquele que morreu [Sérgio Motta, que foi ministro das Comunicações de FHC], e outros chamaram a Previ e mandaram entrar no outro consórcio.

Folha - Integrantes do PT, gente dessa elite já participava disso?
Oliveira -
Claro, já estavam. Isso é uma prática que o PT inventou? Não. Não é uma invenção de maldade do PT nem por cooptação ideológica. São processos objetivos que a institucionalidade criou e criou na melhor das intensões. Não é maldade inventada. Mas isso cria novos interesses, cria nova consciência social.

Folha - Isso se reflete como na política? A crise na política vai além da aproximação desses partidos? É possível esperar novos partidos de esquerda para defender interesses que o PT já defendeu?
Oliveira -
É difícil. Não é impossível, essas relações não são congeladas, é um processo muito dinâmico, mas eu acho que o ornitorrinco conspira contra isso.
Não é fácil porque as forças históricas que constituíram os partidos de esquerda estão em forte mudança no mundo todo. Não é porque a social-democracia corrompeu, e vá lá que corrompeu, seria impossível não corromper. Corromper do ponto de vista mais banal. É uma mudança profunda na relação de forças, na classe, na sua formação.

Folha - Por quê o ornitorrinco conspira contra a política?
Oliveira -
Porque o ornitorrinco é essa coisa truncada. Ele produz esse exército "informal" [de trabalhadores] e não dá para fazer política assim. Fazer política sem algo que estruture objetivamente os interesses é tarefa de missionário. É preciso chamar de novo os padres Nóbrega e Anchieta para reevangelizar. Por que esses partidos de classe surgiram na esteira de sindicatos? Porque é uma estrutura material de interesse capaz de agregar. São interesses que agregam, do lado dos capitalistas e dos trabalhadores.
Quando essa estrutura material se desintegra, fazer política é coisa de missionário. As condições que formaram o PT não existem mais. Existirão outras certamente, mas quais? Ninguém sabe. Vai ser feito por experimentação social. E pode não dar em nada. Vamos acabar com essa crença automática no progresso. Pode não dar em nada.



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