São Paulo, domingo, 23 de março de 2008

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JANIO DE FREITAS

A autoridade dos mosquitos


Prefeitura, governo estadual e governo federal têm igual responsabilidade e nenhum cumpriu suas obrigações, enquanto a dengue faz a cada dia mais vítimas fatais no Rio


A DUPLA discussão que vem ocorrendo enquanto a dengue faz a cada dia mais vítimas no Rio, inclusive fatais e sobretudo crianças, é um escapismo imperdoável. As acusações que tanto ocupam a prefeitura, o governo do Estado e o governo federal, cada um a apregoar a própria inocência e responsabilizar os outros dois, é grotesca diante do comprovável: entre os três não há inocente, nem menos culpado. Os três têm, determinadas pela legislação, obrigações equivalentes e igual responsabilidade pela população que, se é do município, é também do Estado e do país. E nenhum dos três cumpriu suas obrigações na fácil prevenção.
Não é menos inaceitável a outra forma do escapismo, adotada como confronto entre os que negam haver epidemia (Cesar Maia afirma até haver queda de casos) e os que denunciam epidemia ocorrente desde janeiro. No momento em que escrevo, são 25 crianças mortas em 29 casos de morte. Ao menos um novo doente a cada minuto, em total incalculável porque muitos não vão a hospital, por dificuldade ou tratamento privado.
Mas as chamadas autoridades enrolam-se, há mais de dois meses, em percentuais e em comparações aritméticas entre surto e epidemia -e a população se esvai nas filas lerdas e longas, as crianças queimando na febre, os idosos ruindo na fraqueza, para um atendimento que se recomenda urgente tão logo haja os primeiros sintomas.
E os hospitais municipais, do Estado e do governo federal já não têm nem cadeiras bastantes, quem dirá leitos, para que nem tantos injetados por soro sentem-se no chão; não têm médicos em número suficiente, remédios só não faltam ainda porque a dengue não exige medicação incomum.
É uma situação africana. Instalada na cidade onde a prefeitura, o governo estadual e o governo federal gastaram uma fortuna que nenhum dos três diz a quanto chegou -para fazer os Jogos Pan-Americanos. E ambicionam gastar muito mais para fazer, na cidade, a Olimpíada. E muito, muito mais, para fazer no país outra Copa do Mundo.
Cesar Maia, blogueiro diuturno, tem um argumento para isentar a prefeitura de responsabilidade: "Nos hospitais municipais houve menos mortes por dengue do que nos estaduais". Era verdade, e talvez ainda seja. Mas ninguém deve supor que Cesar Maia não percebe a confusão, em seu argumento, entre lugar da morte e causa da morte. Morrer de dengue, em cidade como o Rio, é um escândalo e uma acusação. O truque é típico de Cesar Maia, que o arremata com uma de suas frases tanto de efeito como defeito: "Transferir responsabilidades é próprio dos fracos". Sentença em que Cesar Maia dispensa testemunhos: é autor e prova.
O tempo que o ministro da Saúde gastou, do ano passado para cá, na defesa da CPMF e à cata de mais verbas orçamentárias para a Saúde, pode ser medido por sua quota nas três ou mais dezenas de milhares de doentes da dengue. Apesar disso, para este ano José Gomes Temporão ficou no prejuízo. A dormência do governo estadual, por sua vez, não tem explicação perceptível. Mas os efeitos têm.
A dengue ficou erradicada no Rio, quase por completo, durante décadas, graças à ação conjunta do governo federal e da prefeitura (não havia Estado) quando a cidade era capital da República. Aos poucos, retomou o território abandonado pelos governos, até que fez o ressurgimento agudo no governo Fernando Henrique. Sua contenção projetou José Serra, então recém-ministro da Saúde, que ativou a responsabilidade legal e funcional das três instâncias de governo. Na contramão desse êxito, de uma penada extinguiu o serviço de vigilantes sanitários que o governo federal comprometera-se a manter no Rio ao mudar-se para Brasília. Eram os mata-mosquitos. Serra se inspirara em contas de economista: com valores financeiros e não com vidas humanas.
Serviços médicos das Forças Armadas iniciam agora o seu auxílio, a exemplo do que já fizeram os da Marinha, com grande êxito, em uma crise das emergências médicas. Muito apropriado, é de uma guerra mesmo que se precisa. Mas, terminada a batalha, antes que o mosquito transmissor retorne, já o descaso e a inércia terão voltado, que essa é a regra brasileira. Como até os mosquitos sabem e provam. E não se tem idéia de como combatê-la.


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