São Paulo, segunda-feira, 23 de setembro de 2002

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ENTREVISTA DA 2ª

Para José Júlio Senna, chance de guerra eleva aversão ao risco

Incógnita sobre próximo governo explica dólar alto

DO PAINEL S.A.

A incerteza quanto à qualidade da política econômica do próximo governo e o cenário externo adverso são duas das razões principais para a alta do dólar, que fechou a R$ 3,405 na sexta-feira e acumula alta de 13% no mês.
A opinião é do economista José Júlio Senna, 56, Ph.D. em economia pela Universidade Johns Hopkins University (EUA), ex-diretor do Banco Central e sócio da MCM Consultores Associados. Para ele, a situação ainda pode piorar, em caso de uma guerra. No cenário doméstico, o BC tem pouco o que fazer. Leia a seguir trechos da entrevista dada à Folha. (GUILHERME BARROS).

Folha - Diante do quadro atual, é possível dizer que o pacote de cerca de US$ 30,5 bilhões do FMI não ajudou em nada?
José Júlio Senna
- Creio que não é possível afirmar isso. O quadro atual seria bem mais tenso, se não tivesse sido fechado o programa com o Fundo Monetário. De modo geral, as expectativas do mercado, tanto aqui quanto lá fora, foram relativamente contidas quando os candidatos à Presidência assumiram publicamente o compromisso de dar continuidade ao programa posto em prática pela administração Fernando Henrique Cardoso.
O apoio do FMI, porém, não opera milagres. Ele serve de indutor à oferta de crédito por parte do setor privado, mas não consegue assegurar que essa oferta se manifeste na intensidade e no ritmo desejados. Além disso, a despeito do compromisso assumido, nada garante que não se possa voltar atrás. Observe-se, por exemplo, que, de acordo com o que está definido no programa atual, pode ser preciso redefinir as metas trimestrais de superávit primário, em função do comportamento do juro real e do efetivo desempenho da economia. Se o juro real não cair de maneira expressiva, e se a economia não retomar a trajetória de crescimento, as condições de estabilidade da relação dívida/ PIB exigirão algum aumento do superávit primário.
Será que o próximo governante irá concordar em promover novas revisões de metas? Seguramente não, e isso explica, em parte, o nervosismo do mercado.

Folha - Por que a situação voltou a piorar, recentemente, com dólar e risco-país em alta?
Senna
- As razões básicas são duas. Primeiro, as incertezas quanto à qualidade da política econômica do próximo governo e, segundo, o fato de que o ambiente externo mostra-se bastante adverso. Sobre esse segundo aspecto, deve-se ressaltar que há uma certa retração na disposição para financiar países emergentes, depois da crise da Rússia e do episódio da quebra do LTCM [Long Term Capital Management, fundo agressivo que investia em países emergentes", soma-se agora um comércio mundial em retração. Já são dois anos de contração no volume do comércio internacional, o que resulta de ritmos bastante modestos de crescimento nas três principais regiões econômicas do planeta: EUA, zona do euro e Japão. Em grau ainda modesto, medidas protecionistas voltaram a fazer parte do cenário.

Folha - Quais as razões desse crescimento lento no mundo?
Senna
- O Japão vive a fase pós-bolha, há cerca de dez anos. Os governantes, principalmente o Banco Central do Japão, foram excessivamente otimistas com relação às perspectivas de inflação e de crescimento no início dos anos 90. Não perceberam que as forças do crescimento estavam minguando e que a deflação estava a caminho. Foram tímidos na política de redução dos juros e a deflação efetivamente se instalou. No final de 2002, serão quatro anos de queda efetiva de preços, o que torna a solução bem mais difícil.
Quanto aos EUA e à Europa, os fenômenos foram os mesmos. Os anos 90 foram de prosperidade, alimentada por um ritmo bastante forte de crescimento dos investimentos privados, induzido, por sua vez, pelo avanço tecnológico, na área da informação. Como costuma acontecer nesses raros episódios de mudança marcante de tecnologia, as Bolsas de Valores entraram em ebulição. Ao mesmo tempo, as autoridades monetárias, especialmente o Fed [banco central dos EUA", permitiram expressivo ritmo de crescimento monetário, que deu ainda mais gás à fase de euforia.
No final do ciclo, os empresários perceberam que haviam investido em excesso, e os investidores entenderam que exageraram nos preços das ações, ao mesmo tempo em que o Fed pisava no freio monetário. Os resultados são conhecidos. Para voltar à normalidade, será preciso livrar-se do excesso de capacidade produtiva, o que costuma acontecer mediante a retomada do consumo privado. Esse, porém, lamentavelmente, encontra-se contido, diante de tanta notícia ruim, nos últimos tempos: a própria queda dos mercados acionários, a desconfiança acerca dos balanços das empresas, a ameaça terrorista e, como se não bastassem esses fatores, a perspectiva de guerra.

Folha - Quais as suas previsões até o final do ano?
Senna
- No campo externo, é bem pouco provável que haja alteração expressiva. Se de fato houver guerra, a tendência, na verdade, é de agravamento. Num ambiente como esse, cresce a aversão a risco nas economias centrais. O baixo nível dos juros de dez anos nos Estados Unidos, por exemplo, de 3,8% ao ano, é reflexo não apenas de desânimo com relação às perspectivas da economia, mas também desse desejo dos investidores de procurar ativos de menor risco, em épocas de turbulências. No terreno doméstico, tudo dependerá dos resultados das eleições. A esse respeito, os participantes de mercado já têm opinião formada. Sobre isso, cabe lembrar os ensinamentos de Keynes acerca de investimentos em geral. Para acertar quem será a vencedora de um concurso de beleza, o indivíduo não deve escolher a que ele considera a mais bonita, mas sim procurar adivinhar a opinião média dos participantes. Na questão das eleições, a opinião média já se formou: o mercado gosta mais de um candidato do que de outro.

Folha - Lula representa o risco maior?
Senna
- O mercado entende dessa maneira. Mas é preciso notar que, na verdade, há uma grande incógnita a respeito do que seria a política econômica de Lula, caso eleito. Em qualquer campanha, é sempre muito difícil distinguir propostas de política voltadas exclusivamente para ganhar votos de idéias que efetivamente imagina-se possam ser colocadas em prática. No caso de Lula, trata-se de uma longa campanha para ganhar a Presidência, que já dura mais de uma década, período ao longo do qual acumularam-se muitos compromissos. Apesar disso tudo, parece predominar uma boa noção das limitações práticas que sempre se apresentam à ação dos governantes. Embora legítimas em termos de aspiração, muitas coisas simplesmente não podem ser feitas, ou só podem ser implementadas aos poucos, com muita paciência. Além disso, pesam sobre o PT muitos rótulos assustadores. Em parte por isso, acredito que Lula adotará, se eleito, um tom bastante conciliador. Os anúncios sobre a política econômica a ser posta em prática em 2003 tenderão a ser sensatos, caracterizando o que poderia ser chamada de uma estratégia "market friendly" ["convivência amigável"".

Folha - Se é assim, por que o mercado continua nervoso, e reage negativamente toda vez que Lula sobe nas pesquisas, principalmente diante da possibilidade de uma vitória no primeiro turno?
Senna
- Porque não é possível ter certeza de que a concepção de política pró-mercado dos vencedores da eleição coincida com a concepção sobre o assunto dos agentes econômicos de modo geral, em especial dos que têm maior poder para influenciar os mercados.

Folha - Qual o papel do Banco Central em momentos como este?
Senna
- Não há muito o que inventar, a este respeito. Mas algumas coisas parecem básicas. Primeiro, é preciso evitar pôr lenha na fogueira das preocupações, o que certamente aconteceria caso houvesse aumento de taxa de juro. Está correta a atitude do BC no sentido de manter estável a taxa Selic, de dedo no gatilho para reduzir o juro, na primeira oportunidade. Segundo, é fundamental tranquilizar os detentores de papéis públicos, dando liquidez aos títulos e procurando reduzir o prazo médio da dívida pública, na medida do necessário.
Terceiro, como vem fazendo o BC, procurar chamar a atenção para os grandes avanços institucionais ocorridos na economia brasileira, em tempos recentes: Lei de Responsabilidade Fiscal, câmbio flutuante, metas de inflação, etc.
Quarto, trabalhar arduamente no sentido do restabelecimento do crédito externo, sendo igualmente correta a busca de apoio das organizações internacionais, em especial do FMI. Quinto, intervir no mercado de câmbio apenas para corrigir as eventuais deficiências de recursos externos, sem a preocupação de manter fixa a taxa de câmbio. Em suma, em termos gerais, agir como tem feito recentemente o Banco Central do Brasil.

Folha - Como garantir a retomada do crescimento?
Senna
- Essa é a grande questão. O Brasil experimenta duas décadas de crescimento econômico bastante modesto. Em larga medida, o crédito externo, que o programa com o FMI procura estimular, tornou-se mais escasso exatamente por essa razão.
Nos últimos oito anos, apesar do fantástico resultado no terreno da inflação, não foi possível obter taxas expressivas de crescimento, sendo que apenas parte disso pode ser atribuída ao custo "normal" do combate à inflação. A média anual de crescimento do PIB foi de 2,4% ao ano. Com a questão eleitoral, vieram as dúvidas sobre a capacidade dos próximos governantes de promover a retomada do crescimento, devendo-se lembrar que qualquer economia, para crescer, requer condições econômicas e políticas saudáveis, arcabouço institucional propício aos negócios etc.
Sem crescimento, fica bem mais difícil, independentemente do país, obter crédito. É o que acontece também com as empresas. Ninguém empresta recurso para quem não cresce ou o faz em ritmo lento.

Folha - De que fatores depende essa retomada do crescimento?
Senna
- Em primeiríssimo lugar, do restabelecimento da confiança, hoje abalada por uma série de razões e agravada pelo mau humor predominante no mundo desenvolvido. Para que a confiança se restabeleça, o principal são o anúncio e a colocação em prática de políticas econômicas saudáveis, por parte dos governantes que serão eleitos em outubro. Se isso de fato acontecer, as expectativas se reverterão, o câmbio se apreciará, seguindo o ritmo da redução dos prêmios de risco do país, e as taxas de juros recuarão, viabilizando-se a redução da própria taxa Selic [que hoje está em 18% ao ano". Isso daria um grande alívio e principalmente tempo ao novo presidente para implementar sua política num ambiente bem mais favorável.
Mas não faz sentido alimentar ilusões. A tarefa do próximo governante será necessariamente árdua.

Folha - Quais os grandes desafios?
Senna
- Além da necessidade óbvia de aumentar as exportações, será preciso conter o ritmo de expansão do gasto público.
O governo Fernando Henrique realizou bastante, pois deu início à reforma do Estado, colocou, no segundo mandato, o ajustamento fiscal em plano prioritário, promoveu a aprovação da importantíssima Lei de Responsabilidade Fiscal, mas não teve êxito em conter o crescimento do gasto público. Em larga medida, isso dependeria também do Congresso aprofundar as reformas.
O fato concreto é que, em oito anos, o gasto público cresceu 6 % ao ano, em média, em termos reais. A carga tributária cresceu muito justamente porque o gasto não parou de subir. Tentativas de reformas tributárias terão resultados práticos sempre muito precários enquanto prevalecer a idéia de que elas têm de ser neutras em termos de impactos sobre a receita. É preciso que o ritmo de crescimento do gasto público caia para que a receita possa diminuir. Isso terá largo proveito para a economia como um todo, ou seja, para o processo de crescimento, viabilizando-se reformas tributárias eficazes. É um erro pensar que o crescimento do gasto governamental ajuda o processo de crescimento. É justamente o contrário.

Folha - Mas isso será suficiente para a normalização do crédito externo? O Brasil precisará de mais recursos internacionais?
Senna
- Políticas nessa direção serão de fundamental importância. Na verdade, o fundamental é que o próximo governante dê sinais efetivos de que compreende a natureza dos problemas e de que se dispõe a negociar as necessárias reformas com o novo Congresso. Como é bem provável que esse Congresso esteja com o poder ainda mais pulverizado do que agora, certamente não será tarefa fácil. Quanto à questão dos recursos, o Brasil ainda precisará, por um bom tempo, de financiamento externo. Não me refiro a dinheiro do FMI, mas a recursos privados. O FMI é apenas indutor, nesse processo.


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