São Paulo, segunda-feira, 23 de setembro de 2002

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BRASIL PROFUNDO

Estudantes do município de Crato, no Ceará, têm que atravessar açude com um barco para ir à escola

Crianças madrugam e remam para ir à aula

Marlene Bergamo/Folha Imagem
Eduardo,13, segura o material escolar, enquanto seu primo Robério, 14, rema para chegar à escola


KAMILA FERNANDES
DA AGÊNCIA FOLHA, NO CRATO (CE)

Material escolar no fundo do barco e uniforme guardado para não molhar. Desde os sete anos de idade, Robério da Silva, 14, e seu primo Eduardo Lima de França, 13, vivem a mesma rotina remando durante a madrugada para atravessar um açude. É a primeira etapa da maratona que os "remadores do sertão" -como os alunos são conhecidos- percorrem para chegar à escola, no município do Crato, interior do Ceará.
A escola fica a 15 km de distância, no distrito de Ponta da Serra. Atravessar o açude a remo é apenas a primeira etapa para Robério, Eduardo e outras seis crianças. Depois, elas são levadas na caçamba de uma camionete sem cobertura e lotada com 20 crianças até, finalmente, chegar a um local onde passa o ônibus escolar.
Não existem estatísticas para avaliar quantas crianças têm dificuldades de chegar à escola por causa de veículos precários no país. Há um único levantamento (leia na pág. 7) feito pelo Geipot (Empresa Brasileira de Planejamento de Transporte). Mas essa realidade é comum principalmente nas áreas rurais dos municípios. Este ano, pela primeira vez, o Ministério da Educação incluiu no censo escolar um questionário para avaliar o transporte escolar no Brasil.
O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Nacional de Trânsito garantem o direito a um transporte escolar seguro, fornecido pelo município, no caso de não existir uma escola próxima do aluno. Uma verba para esse transporte é dada pelo governo federal, por meio do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), aos municípios.
Eduardo, que cursa a 6ª série do ensino fundamental, é o que vive mais longe, na localidade de Mont'alverne, e acorda primeiro para buscar três primos, às 3h30 da madrugada. Na maioria das vezes, ele sai sem comer de casa, onde vive com a avó. "Quero ser médico, e vale o sacrifício", disse.
Para acordar tão cedo, ele comprou um relógio despertador por R$ 1 com o dinheiro que ganha ajudando o tio a tirar castanha de caju, à tarde. Ele recebe R$ 2 por semana pelo trabalho.
Robério e os irmãos Rodrigo, 15, e Roseane, 13, além de quatro vizinhos que estudam na mesma escola, vivem na localidade do Mari, do outro lado do açude Thomaz Osterne de Alencar, mas ainda assim têm de acordar às 4 horas da manhã para chegar a tempo no local onde uma camionete D-20 vai buscá-los, às 6h. Eles chegam na escola Bizerra de Brito às 7h. "A gente chega cansado que só, mas eu nunca dormi na aula, não", disse Robério.
A diretora da escola, Ana Paula Brito, aponta as oito crianças como bons alunos, mas com um desempenho mediano. "Também, não poderíamos cobrar deles o mesmo que de um aluno que mora mais perto e que pode dormir mais tempo", disse. "O aluno que passa por um grande esforço antes de chegar à escola é bastante prejudicado", disse a professora Ana Maria Iório, do departamento de Educação da Universidade Federal do Ceará.
Na volta, os alunos fazem o mesmo percurso, mas têm de remar menos, porque a maré é favorável, apesar do sol forte. O clima não muda o trajeto: "Quando chove, a gente leva o uniforme na mochila e sai com uma roupa velha, para se trocar só lá na escola", conta Eduardo. Na mesma escola, no período da noite, cerca de 60 estudantes, entre 13 e 17 anos, que vivem no distrito do Cipó, também no Crato, são transportados em um pau-de-arara.
O Código Nacional de Trânsito regulamenta como deve ser o veículo que transporta estudantes. Pela lei, o veículo deve ter cintos de segurança para todos e deve ser registrado como de passageiro. As camionetes e os paus-de-arara usados nesses casos para transporte de estudantes são considerados veículos de carga.
O uso de paus-de-arara, camionetes e até carroças para o transporte escolar foi um dos alvos de uma CPI, instalada em 1999 na Assembléia Legislativa do Ceará, que investigou denúncias sobre o mau uso do Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) por algumas prefeituras.
A própria Assembléia e outras entidades, como o Cedeca (Centro de Defesa da Criança e do Adolescente), entregaram um termo de ajustamento de conduta do transporte escolar ao Ministério Público Estadual, depois que crianças que estavam em veículos irregulares morreram.
"Recebemos denúncias de vereadores que aproveitam o mandato e contratam um conhecido, sem licitação, mesmo se o transporte for precário", disse o deputado estadual Artur Bruno (PT).


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