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JANIO DE FREITAS
Disfunção social
Um dos engodos mais responsáveis pela gravidade
dos problemas sociais brasileiros
tem o nome de "função social da
empresa" ou, na variante que enche igualmente as falas de certo
tipo de empresário, "função social do capital".
Nas suas boas intenções, que
não enchem o inferno mas enchem o Brasil de engodos, diz a
Constituição no capítulo quase
humorístico dos "Princípios Gerais da Atividade Econômica":
"Art.170 - A ordem econômica,
fundada na valorização do trabalho humano e na iniciativa
privada, tem por fim assegurar a
todos existência digna, conforme
os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...) II-propriedade privada; III-função social da propriedade", e
assim vai.
Ou antes, não vai. A função social da empresa ou do capital só
pode começar pela remuneração
posta e mantida no limite do econômica e financeiramente possível. É o primeiro passo para a
"valorização do trabalho humano", único modo de, como resultado final, "assegurar a todos
existência digna", também chamada de "justiça social".
Os bancários estão fazendo, em
24 Estados, a maior greve dos últimos 15 anos. Nestes 15 anos, os
lucros dos bancos fizeram o mesmo que já faziam por décadas:
tornaram-se escandalosamente
maiores ano a ano. Os lucros de
bancos no Brasil não têm nada
parecido no mundo todo. Por várias vezes, grandes bancos dos Estados Unidos, como o Citicorp e o
Boston, têm feito a expressividade dos seus lucros finais com o lucro que realizam no Brasil. (Foi
por esse caminho que Henrique
Meirelles, presidente do Banco
Central, colheu o prêmio de presidir o Boston nos Estados Unidos, até receber o prêmio dado
por Lula para vir cuidar, aqui,
dos juros que garantem altos lucros aos bancos em atividade no
Brasil).
Os bancos brasileiros fazem os
maiores lucros bancários do planeta, mas não têm competidor
também em outro aspecto: pagam aqui os piores salários relativamente aos lucros. Não lhes
basta a usura: praticam também
a avareza.
Afora os bancos e similares, a
Petrobras lidera as 500 empresas
mais lucrativas: seu lucro representa quase um terço dos lucros
de todas as 500. É um caso eloqüente: o bom resultado repassa-se aos acionistas, enche a caixa
de impostos do governo, mas
quem o produz não recebe a
compensação proporcional. Os
funcionários da Petrobras estão
na iminência de outra greve daquelas, para reposição e algum
aumento real. Mais do que direito, têm razão de fazê-la. O seu
trabalho é valiosíssimo para o
Brasil. Porque não é o petróleo
que está fazendo a quase auto-suficiência petrolífera brasileira,
nem o lucro da Petrobras: é quem
faz o petróleo vir das profundezas até transformar-se em riqueza nacional e em lucro empresarial.
De repente, o leitor/espectador
teve conhecimento de que o funcionalismo do Judiciário paulista
está em greve há três meses. Com
o acúmulo de 12 milhões de ações
paralisadas, o presidente do Superior Tribunal de Justiça ameaçou intervenção em São Paulo.
Mas ninguém permanece em
greve por três meses se essa greve
não provier de necessidade real e
de forte sentimento de injustiça.
O polêmico fundamento legal da
intervenção, mesmo que dissolvido na teoria, não seria solução.
Nos bancos, na Petrobras, no
Judiciário paulista, nas demais
áreas atingidas por greves ou sob
risco de sê-lo, a solução é o honesto reconhecimento de perdas impostas aos salários e vencimentos
nos últimos dez anos. As que não
podem ser repostas de uma vez,
por certo podem ser remediadas
(o governador Alckmim não lançou nesta semana um pacotaço
de redução de impostos, em evidente demonstração das boas
condições do Tesouro paulista?).
Nestes dez anos de plano real e
doutrina econômica ditada pelo
FMI, a parcela correspondente à
remuneração do trabalho decresceu, na renda nacional, quase
dez pontos percentuais, como
disse ontem o competente Márcio Pochmann. Não se trata, portanto, de pretender a "função social da empresa ou do capital".
No Brasil, coisas assim sempre
foram dados como subservidas. E
aqui o seriam, mesmo. Trata-se
de algo modesto que o governo
de um ex-operário pode estimular sem problema - isso, é claro,
com a ressalva de que tudo depende de até onde foi ou vai sua
conversão.
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