São Paulo, domingo, 24 de fevereiro de 2008

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ELIO GASPARI

O capitalismo produzirá o milagre cubano


Compay compra o cortiço de Arsenio e o carteiro de Miami vai morar no dobro do espaço, com US$ 300 mil no bolso

NINGUÉM SABE o que vai acontecer em Cuba, mas o castrismo poderá chegar a um estágio superior do socialismo, o velho e bom capitalismo.
O que vem sendo chamado de "transição" será uma saída do fracasso em direção a alguma coisa que, por enquanto, não se sabe o que é. Cada um pode exercitar a própria imaginação para conferir, no futuro, a qualidade de suas suposições.
O caminho chinês do stalinismo de mercado poderia começar pela transformação das bases militares cubanas em zonas especiais de livre iniciativa. Teria a vantagem de empregar a soldadesca que ficará sem ter o que fazer. Há uma proposta de conversão da base americana de Guantánamo, o terceiro melhor porto da ilha, numa dessas zonas livres. (Acabar com o DOI-Codi de Bush é o sonho dos três candidatos a presidente dos Estados Unidos.)
A rota chinesa preserva algum poder para a máquina do Partido, mas sua adoção pura e simples tem muitos obstáculos. Um deles é o das indenizações das empresas e dos cidadãos americanos que tiveram suas propriedades confiscadas pelos comunistas. É um patrimônio de US$ 3 bilhões, com 6.000 pleitos. A tradição ensina que essas indenizações acabam sendo negociadas por algo entre 10% e 50% do valor. Na República Tcheca, os expropriados receberam títulos da dívida pública.
Na Rússia, os imóveis e as empresas foram convertidos em papéis que enriqueceram os hierarcas da produção soviética. Os apartamentos da melhor nomenklatura ficaram para os moradores. Alguns chegam a valer US$ 1 milhão e o neto do chanceler Molotov vive da renda de um imóvel alugado a banqueiros americanos.
Há 1 milhão de cubano-americanos que se intitulam donos de empresas, fazendas e imóveis confiscados. Estima-se que surgirão cerca de 100 mil litígios. Resolvê-los pode parecer uma volta ao passado, mas será uma chegada ao futuro.
Um exemplo do que o capitalismo pode fazer por Cuba:
Imagine-se Arsenio, o herdeiro de um casarão que ocupa 2.000 metros de terreno na avenida Salvador Allende. O palacete tornou-se um pardieiro onde vivem dez famílias. Uma comissão do governo cubano avalia o lote em US$ 500 mil. Arsenio poderá receber um papel com esse valor de face, mas só assumirá a propriedade se tirar as dez famílias do local. Como ele mora em Miami e nenhum cubano será expulso do lugar onde mora sem ter para onde ir, o título vale o que alguém estiver disposto a pagar.
Compay, um corretor de imóveis de Miami que tem bons amigos no Partido Comunista, decide comprar a propriedade por 10% do valor do título. Arsenio embolsa os US$ 50 mil e vai em frente.
Compay junta mais uma caixinha de US$ 25 mil dólares para lubrificar suas negociações e vai para Havana. Oferece um apartamento de dois quartos e sala a cada uma das dez famílias. Constrói as residências num outro bairro e gasta, no máximo, US$ 200 mil.
Demolido o casarão, o corretor ergue um edifício de oito andares com 16 bons apartamentos de quatro quartos e sala. A obra custará uns US$ 500 mil. Ele vende cada apartamento por US$ 100 mil a estrangeiros e fatura US$ 1,6 milhão. Nas duas obras, empregará cem cubanos por um ano. Beneficiado por um programa de incentivo à construção civil e outro de estímulo a habitações populares, paga só US$ 25 mil em impostos. Tendo investido US$ 800 mil, Compay realizará um lucro de 100%.
Na outra ponta do negócio está Wim, um carteiro aposentado que mora em Miami, num apartamento de dois quartos e sala. Ele vende sua propriedade por US$ 400 mil e vai viver em Havana, no prédio de Compay.
Todo mundo ganha. Arsenio fatura US$ 50 mil com um casarão que nunca viu. Vinte amigos comunistas ganham, numa só tacada, algo como um ano de salário dos dias de hoje. Os moradores do cortiço tornam-se proprietários de apartamentos que valerão uns US$ 20 mil cada um. O carteiro aposentado vai morar no dobro do espaço, com US$ 300 mil no bolso. Se Compay voltar para Miami com metade do que lucrou, ainda assim, entraram na economia cubana cerca de US$ 500 mil, o hipotético valor inicial do pardieiro inútil.

A ESPANHA ESQUECE QUE JÁ EXPORTOU POBRES

O embaixador espanhol no Brasil, Ricardo Peidró Conde, precisa avisar à polícia do aeroporto de Madri que ela está envenenando as relações de seu país com Pindorama. Aplicando os critérios de admissão exigidos pela União Européia, ela repatria 1 em cada 100 brasileiros que desembarcam no país. Faz isso porque muitos deles podem se transformar em trabalhadores sem documentos. Poderia exercitar a gentileza que o embaixador espera receber dos brasileiros, mas age com a inteligência de um parafuso.
A física Patrícia Camargo Magalhães, de 23 anos, foi deportada no último dia 12 depois de ficar detida por 53 horas numa sala do aeroporto. Ela teve a infelicidade de passar por lá a caminho de Lisboa, onde participaria de um Congresso científico.
A polícia não deu valor às suas explicações nem a um fax de um professor da USP. Ela acha que fez o certo, pena.
Peidró Conde talvez possa contar à turma do aeroporto que, na história dos dois países, foi o Brasil quem mais acolheu miseráveis em busca de terra e trabalho. Foram 717 mil, desde o século 19, 128 mil entre 1948 e 1972. Depois de 1910, quando o governo espanhol dissociou-se da exportação de pobres para fazendeiros rapinadores, muitos deles foram contrabandeados por Gibraltar.
A onda migratória de brasileiros é coisa recente e tomara que acabe.
Eles seriam 70 mil só na Espanha. A satanização dos passaportes nacionais é fruto do preconceito. Um preconceito igual ao que houve contra os espanhóis que, por pobres, eram vistos no Brasil como delinqüentes ou, por exaltados, como anarquistas. Entre 1915 e 1918, 403 espanhóis foram mandados às penitenciárias do Rio de Janeiro. (Ficam fora dessa conta os donos do Bateau Mouche que naufragou durante o Réveillon de 1988 no Rio de Janeiro, matando 55 pessoas.) Na cana de La Moraleja há apenas 40 brasileiros.


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