UOL

São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NO PLANALTO

Semi-analfabetos concluem o segundo grau

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A educadora alemã Ina von Binzer viveu no Brasil entre 1881 e 1883. Era aia em casas ricas do Rio e de São Paulo. Zelava pela educação doméstica de crianças bem-nascidas. Eletrificado pelo debate em torno da iminente abolição da escravatura, o país se contorcia à sua volta.
Em cartas enviadas para amiga na Alemanha, Ina lastimava que as crianças negras, àquela altura já libertas ao nascer, não recebessem nenhum tipo de instrução. Segundo o raciocínio das almas brancas, seria um "desperdício de dinheiro". Livres, os negrinhos não dariam mais "lucro".
Ina perguntava à amiga: "Não estarão percebendo que, agindo assim, estão preparando a pior geração que se possa imaginar para conviver mais tarde com seus próprios filhos?"
A correspondência de Ina foi reunida em livro na década de 50. Chama-se "Os Meus Romanos -Alegrias e Tristezas de uma Educadora Alemã". Lendo-o, percebe-se que o Brasil das cartas da professora, embora velho de 120 anos, é atualíssimo.
Os brasileiros muito pardos e muito pobres agora vão à escola. Mas nem sempre recebem instrução. A maioria frequenta dois tipos de estabelecimentos públicos: os ruins e os muito piores.
Visto sob o ângulo das estatísticas, o quadro é chocante: 64,76% dos alunos de 8ª série e 52,54% dos que estão no último ano do ensino médio têm dificuldades para ler e escrever. São dados do MEC.
Contemplado mais de perto, o cenário torna-se alarmante. Experimente-se entrar na sala de aula do professor Nilton Ismael Rosa. No final de 2002, ensinava história no Centro de Ensino Médio Setor Leste, prestigiada escola pública de Brasília.
Na bica de prestar vestibular, vários alunos de Ismael Rosa revelaram-se semi-analfabetos. O professor pediu em prova que os estudantes citassem, por exemplo, dois acontecimentos que contribuíram para a queda da monarquia no Brasil.
Eis uma das respostas, com todos os erros, mas sem o nome do autor: "Monopolo brigaro, a queda cafeira, camada acima briga dos grandes fasendero por que suas riquezas era concentrada poriso teve conflitos no Brasil".
Pediu-se também aos estudantes a diferença entre democracia e ditadura. A resposta de outro pré-vestibulando: "A democracia é um objetivo que o ser humano luta para obter fazendo o possive e dano o melhor de sim. A ditadura é algo cero que exigem responsabilidade autoridade."
Reprovados pelo professor, os autores das respostas acima foram aprovados pelo conselho de classe da escola. Como eles, outra meia centena de estudantes com média final abaixo de 4 levou à parede o diploma de conclusão do 2º grau.
O professor Ismael Rosa pediu a anulação da decisão do conselho, integrado por todos os professores da escola. Desatendido, pôs a boca no mundo. Transferido de escola, foi à Justiça. Em decisão liminar, foi devolvido ao colégio, sob protestos de colegas de magistério.
Ouvida, a secretária de Educação de Brasília, Maristela de Neves Melo Mendes, alega que a transferência de Ismael Rosa nada tem a ver com a pendenga das notas. O professor, diz ela, responde a sindicância. Corre em "sigilo administrativo".
Sobre os alunos, diz: "Deveriam ter sido reprovados muito antes. Mas qual seria o objetivo de retê-los no terceiro grau se a gente não tem como dar para eles toda a escolarização de novo? Pode ser que o conselho de classe tenha avaliado essas condições".
Segundo a secretária, o desastre educacional de Brasília foi agravado por fracassos registrados entre 1995 e 1999. Um deles se chamava "escola por ciclos". Em 80 escolas públicas, as turmas foram divididas por faixas etárias. Crianças de seis, sete e oito anos, por exemplo, frequentavam a mesma sala.
A aprovação era automática. Alunos fracos eram aglomerados em "classes de reintegração". Em 1999, havia 27 mil crianças sob regime de "reintegração". "Estavam analfabetos, com três, quatro anos de escola", diz a secretária de Educação. Interrompida em 2000, a experiência deixou sequelas. Os "analfabetos" foram mantidos no estágio em que se encontravam, entre a 3ª e a 5ª séries.
Espécie de sala de visitas do país, Brasília ocupava, no último grande censo do MEC, o topo do ranking de qualidade de ensino no país. Imagine-se o que se passa na cozinha.
Viva, Ina von Binzer repetiria a pergunta: "Não percebem que estão preparando a pior geração que se possa imaginar para conviver mais tarde com seus próprios filhos?"


Texto Anterior: Elio Gaspari: A derrota de Marta é sonho
Próximo Texto: Conflito agrário: Governo quer criar ouvidorias nos Estados
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.