São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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ELIO GASPARI

As empresas tomam carteiradas amplas e irrestritas

É dura a vida do empresariado. Aguenta uma carga tributária de 40% e ainda fica sujeito a um regime de doces e transparentes carteiradas. Aqui vão dois casos acontecidos com o mesmo empresário, num espaço de duas semanas:
A agenda da casa de Joaquim Nabuco
Chegou à mesa do infelicitado homem de negócios um fax de um senhor Francisco Torres, representante da empresa Research & Communications, de Nova York, "continuando nossa conversa ao telefone". Noves fora o fato de nunca terem falado ao telefone, Torres informou-o de que a embaixada brasileira em Washington lançará uma agenda de mesa para o ano de 2005. Coisa destinada a "facilitar a comunicação e as relações públicas". O mimo será distribuído pela embaixada às "mais importantes autoridades relacionadas com a política e a economia" dos dois países.
Anexo ao fax do doutor Torres, atestando-lhe a qualificação, vem uma carta, em inglês, em papel timbrado da Brazilian Embassy, na qual o conselheiro João Pedro Costa (que o empresário nunca viu mais gordo) reitera a informação e mostra a caneta: "Nós ficaríamos felizes se o senhor pudesse contribuir para o sucesso desse projeto, recebendo um representante da Research & Communications". Anexo às duas cartinhas vem uma tabela de preços de publicidade: a página dupla da agenda custa US$ 21,5 mil, meia página sai por US$ 7.900.
O empresário safou-se da proposta. Sofreu vendo a embaixada em Washington (que sustenta com seus impostos) servindo de alavanca para uma empresa com sede em Nova York arrecadar dinheiro no Brasil. Uma repartição que já foi chefiada por Joaquim Nabuco dando-se a serviços de papelaria natalina.

Os deputados e a Cota Master
Dez dias depois, em papel timbrado da Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados, cinco parlamentares pedem ao empresário que participe do painel "Balanço Social: A Energia que Move a Solidariedade", a ser realizado em dezembro, em São Paulo. Anexo ao fax remetem, sempre em papel timbrado da Câmara, um ofício-faca: "Temos a honra de convidar (a sua empresa) a tomar parte desta importante cruzada cívica: Cota Master, R$ 70 mil".
A compra de uma Cota Master (paga à empresa Balanço Social, organizadora do evento) dá direitos a algumas contrapartidas, listadas num papel civicamente timbrado da Câmara. Uma delas é um livro, de valor estimado em R$ 5.000. O crachá vale R$ 1.500.
São os seguintes os deputados signatários da carta: João Pizzolatti (PPB-SC), Eduardo Gomes (PSDB-TO), Rose de Freitas (PMDB-ES), Eduardo Sciarra (PFL-PR) e Marcelo Siqueira (PSDB-MG).
Nos dois casos, a privatização dos serviços públicos foi levada longe demais. O empresário fez a conta: com afeto e doçura, tentaram lamber R$ 130 mil de sua caixa. É o salário mensal de 130 trabalhadores.

Mentiras velhas
Com o objetivo de reduzir as desonestidades, mentiras e empulhações colocadas em circulação sempre que se discute o comportamento dos comandantes das Forças Armadas durante a ditadura militar, aqui vai um fato:
No dia 12 de fevereiro de 1974, o general de Exército Vicente de Paulo Dale Coutinho, chefe do Estado-Maior e ex-comandante da guarnição do Nordeste (1971-1973), reuniu-se com o presidente eleito Ernesto Geisel. Fora chamado para ser convidado para o cargo de ministro do Exército.
Coutinho disse (em conversa gravada sem o seu conhecimento, mas por pleno e expresso interesse de seu interlocutor):
"Eu fui para São Paulo em 1969. Agora, melhorou, aqui entre nós, foi quando nós começamos a matar. Começamos a matar".
"Eu fui obrigado a tratar esse problema lá (no Nordeste) e tive que matar. Tive que matar".
"Morreu lá no meu DOI um homem, foi justamente em cima daquele que veio o habeas corpus. O homem tinha morrido dentro do meu DOI. (...) Veio em cima de mim e do meu major chefe do meu DOI. Aí eu não deixei ele responder".
Nada disso é documento sumido nem denúncia de preso. É o depoimento voluntário do comandante da tropa sob cuja jurisdição morreu o "homem". Ele se chamava Ezequias Bezerra da Rocha, era geólogo e tinha 27 anos. Ao povo, informou-se que fugira.
Não há instituições nesse pedaço da tragédia. Do ponto de vista histórico, há torturadores institucionalmente estimulados, orientados e protegidos pelos comandantes militares da ocasião.
Defende-se instituições chamando-se tortura de tortura e assassinato de assassinato, como faz o Exército dos Estados Unidos no Iraque.

Gente fina
No mesmo dia em que Duda Mendonça foi preso numa rinha de galos presenciando a prática de crime federal, Lula ensinou à patuléia: "Problemas existem e têm que ser tratados com seriedade. Mas o que não serve para ajudar na promoção do turismo não deve ser tornado público com displicência".
Fica melhor assim: o grão marqueteiro não é um cinta-larga. Ele é homem fino, cosmopolita. Serviu uma garrafa de vinho Romanée Conti no dia do debate de Lula na televisão, em 2002.

Entortaram a Faculdade de Direito
Aviso ao doutor Tarso Genro: a crise da gloriosa Faculdade Nacional de Direito (também conhecida como Faculdade de Direito da UFRJ), aquela que funciona no prédio onde se reunia o Senado do Império e se votou a Lei Áurea, provocou a formação de uma comissão plenipotenciária integrada por três brasileiros. Ela dá ao ministro e aos outros mortais um prazo de 30 dias para que se defenestre o diretor da escola, Armênio Cruz Filho. Esse é o desejo unânime do Conselho Universitário da UFRJ. É também o pedido de outra comissão de outros três professores, designada pela reitoria. Eles trabalharam por seis meses num mundo de trevas. Julgaram procedentes seis acusações feitas contra a administração do professor e desejam vê-lo excluído dos quadros do serviço público.
Um aluno apanhou de professor. Outro viu um dez em Direito Penal virar zero. Viu também duas cadeiras cursadas sumirem do seu boletim. Uma professora sustenta que foi lesada num concurso em que a banca não revelou os critérios usados para aferir os títulos dos candidatos. Em duas instâncias, a Justiça deu-lhe ganho de causa. Isso tudo numa escola de direito. Depois há quem reclame do que acontece na Granja do Torto.
A baixaria paralisa a faculdade de 3.000 alunos, deslustra a universidade e ofende a cultura. O reitor Aloisio Teixeira encaminhou ao MEC o pedido de afastamento do professor Armênio do serviço público.
Os três integrantes da comissão plenipotenciária são ex-alunos dos cursos jurídicos do Rio. Passaram as última semanas vagando pelo prédio que tanto amaram. Dois choraram com o que ouviram. Um deles foi visto queixando-se com um dos pavões do Campo de Santana. O presidente da trindade é Pedro Calmon (1902-1985), aquele que, no saguão da escola, disse a um oficial da tropa de choque PM: "Aqui só se entra com vestibular". Os outros dois membros da comissão chamam-se San Tiago Dantas (1911-1963) e Afonso Arinos (1905-1990).
San Tiago ficou furioso quando soube que o curso de direito falimentar tem como pré-requisito o de direito das navegações. Desse jeito ele não teria cursado a cadeira que tantas alegrias lhe deu. Pedro Calmon horrorizou-se ao saber que a congregação da escola não se reúne. Teve uma piscadela de tolerância quando lhe contaram que houve um caso de nomeação da esposa de um marquês para uma chefia de departamento, sem eleição. Calmon ficou feliz ao saber que os estudantes pedem a saída do professor Armênio. O ex-reitor da Universidade tem uma fé enorme na garotada que tanto o vaiou. Afonso Arinos visitará alguns desembargadores do Rio de Janeiro, para contar-lhes que querem nomear um professor sem revelar os critérios que usaram para julgar seus títulos.

Amorim e a Diplomacia do Brasileirão
Vai mal a encrenca que o chanceler Celso Amorim arrumou ao tentar detonar a candidatura do diplomata uruguaio Carlos Perez del Castillo ao lugar de diretor-geral da Organização Mundial do Comércio. Amorim lançou a candidatura do seu colega Luis Felipe de Seixas Correa. Na América do Sul não tem o apoio da Argentina nem do Peru.
O chanceler foi para a briga com modos de comissário. Em vez de ressaltar as qualidades de Seixas Correa, deu-se à desqualificação de Castillo. Lembrou sua atuação desastrosa na conferência de Cancun, em 2003. Fez isso com uma frase viperina, daquelas que têm significado, mas não têm conteúdo: "Pode não ter sido culpa dele, pode ter sido culpa das circunstâncias, mas isso freqüentemente acontece".
Acabou rebatido pelo presidente uruguaio Jorge Battle. As chances de Castillo são pequenas, como as de Seixas Correa. Amorim esqueceu uma lição do legendário chanceler Antonio Azeredo da Silveira (1974-1979). Ele dizia que "tem gente capaz de atravessar a rua para escorregar na casca de banana que está na outra calçada". A briga com Castillo, mesmo em termos elegantes, era desnecessária.
Desde o ano passado, quando Lula orgulhou-se de ter dado "uma trucada nos ricos" durante a reunião da OMC de Cancun, o governo cultiva uma espécie de diplomacia futebolística, para não dizer de carteado. (A trucada equivale à batida do jogo de buraco.)
Lula e Amorim reduzem suas negociações internacionais a "ganhamos" e "perdemos". Ítalo Zappa, outro grande diplomata do século 20, certa vez ensinou a um grupo de jornalistas que tentavam acompanhar a política externa brasileira com cabeça de locutores esportivos:
"Diplomata é um funcionário encarregado de defender os interesses do Estado. Quando ele faz isso, nada lhe custa dizer que perdeu. Não se incomoda se a outra parte, tendo cedido, diz-se vitoriosa. Nossa profissão é trazer para casa o interesse nacional. Ganhar ou perder, nas relações internacionais, não é coisa de diplomatas, mas de militares".
Foi isso que o barão do Rio Branco fez em 1903, quando Rui Barbosa atacou-o, dizendo que cedera demais à Bolívia na questão do Acre. Apanhou calado. Se tivesse dito que dera uma "trucada", Lula estaria descascando o abacaxi boliviano até hoje.

Desemprego no PT
Numa estimativa conservadora, as eleições da semana que vem poderão desempregar cerca de 10 mil petistas.
Seriam uns 5.000 em cargos de confiança, muitos dos quais perderão o poder, o cargo e o carro.
Outros 5.000 são funcionários de prefeituras que, tendo ocupado posições de chefia, voltarão para a planície.

A rua bobeou
Recomeçou uma briga que o PT alimentou ao tempo dos tucanos. Trata-se da sobrevivência do Programa de Educação Tutorial, o PET, pelo qual cerca de 5.000 estudantes universitários recebem assistência pedagógica. Em 1999 foi fulminado e transformou-se num item de manifestações coletivas. Só em Brasília organizaram-se três passeatas. Candidato, Lula reuniu-se com os defensores do programa e louvou-o em seu programa de governo. Empossado, aumentou-lhe o orçamento de R$ 8 milhões para R$ 14,7 milhões.
O doutor Tarso Genro sangrou o programa. As metas de crescimento foram congeladas e contesta-se a própria legalidade da iniciativa, que tem 21 anos de idade. Se o PET é ilegal, o governo deve processar todos os ministros que o utilizaram.
Independentemente do que se ache do programa, quando ele tinha a capacidade de botar gente na rua para protestar contra o governo, o companheiro Lula achava-o ótimo. Agora, ou se junta aos protestos, ou atende aos professores que se julgam logrados.

Cesar Herodes
Sugestão de leitura para as reflexões demográficas do prefeito Cesar Maia. É o livro "Feitores do Corpo, Missionários da Mente", do professor Rafael de Bivar Marques. Esplêndido estudo sobre os manuais de trato de escravos na Américas entre 1660 e 1860. Um passeio sobre a cabeça dos consultores de produtividade da época.
Lá o prefeito vai aprender que, quando interessou ao andar de cima, estimulou-se a procriação dos escravos. O Código Negro do rei da Espanha, de 1763, alforriava a negra que parisse seis filhos caso eles vivessem sete anos.


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