São Paulo, segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

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ARTIGO

Entre a cruz e a espada

ALDO PEREIRA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A carreira eclesiástica de d. Aloísio Lorscheider não diferiu essencialmente da percorrida por outros clérigos que chegam ao episcopado. Estudo diligente e dedicação obediente, desde o seminário, onde ingressou aos 9 anos, até cursos superiores concluídos em Roma. Como em qualquer outra carreira, também contribuiu para o sucesso certo favorecimento da sorte em estar com pessoas certas em lugares e tempos certos: em 1962, aos 37 anos, d. Aloísio lecionava teologia em Roma quando o papa João 23 o nomeou bispo de Santo Ângelo (Rio Grande do Sul).
Era um tempo de históricas turbulências. No plano internacional, rugia a rivalidade entre duas superpotências que se guerreavam "por procuração" no Terceiro Mundo. Internamente, a Igreja Católica buscava conter a erosão de sua relevância num cenário de desigualdades sociais. O "aggiornamento" ("atualização"), promovido por João 23 e concluído por Paulo 6º, reuniu os bispos do mundo em quatro sessões do 2º Concílio Vaticano (1962-65). Do fogoso debate e das reformas decididas sobreviriam divergências que até hoje dividem o clero católico.
No Brasil, o reflexo da Guerra Fria foi o golpe de Estado que em 1964 depôs o presidente João Goulart e abortou outro, articulado por extremistas de esquerda. Sem espaço no constrito sistema político imposto pelos militares, a partir de 1968 a esquerda frustrada recorreu ao clássico agitprop, com passeatas, panfletagem, mobilização estudantil e de facções que a intervenção federal expurgara de sindicatos. Na escalada, o governo reagiu com prisões; a esquerda com atentados, seqüestro e assassinato; o governo com mais repressão, "desaparecimentos" e tortura, inclusive de padres.
Parte da igreja calou; outra parte, liderada por bispos como d. Aloísio, se obrigou a denúncias, protestos e proteção a perseguidos. Quer na secretaria-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (1968-71), quer na presidência da entidade (1971-78), d. Aloísio manteria irredutível oposição ao regime militar. Não por simpatizar com o modelo soviético pretendido por outros oposicionistas, mas por crer numa imprecisa terceira opção.

Acomodação difícil
Em 1978, o prestígio que d. Aloísio ganhara entre a maioria dos bispos brasileiros gerou certo apoio à sua pretensão de disputar a tiara papal, mas o infarto sofrido meses antes da eleição o desqualificou. Naquele ano, votou em Karol Wojtyla, que pontificaria como João Paulo 2º. Mais tarde, porém, daria reticentes indicações de arrependimento. Para evitar oposição frontal e explícita ao pontífice, dirigia-lhe críticas oblíquas, como ao queixar-se vagamente do "excessivo poder" da conservadora Cúria Romana (isto é, o complexo de congregações, comissões e ofícios ao qual o papa delega autoridade administrativa).
D. Aloísio e o papa sempre expressaram sentimentos iguais de caridade e de solidariedade com os excluídos do mundo. Mas num ponto essencial a relação dos dois era inconciliável: João Paulo 2º se opunha ao engajamento político da igreja quando levado às conseqüências violentas justificadas pela Teologia da Libertação. Já d. Aloísio chegava a ver inconformidade legítima até mesmo na prática de certos crimes comuns. Daí sua dedicação em confortar presidiários nos 22 anos em que serviu como arcebispo de Fortaleza (nomeado por Paulo 6º em 1973).
Na Arquidiocese de Aparecida, São Paulo, para onde João Paulo 2º o transferiu em 1995, d. Aloísio acolheu durante cinco anos e meio manifestações anuais de esquerda, com procissões-passeatas que, coloridas de vermelho e branco, portavam imagens de Nossa Senhora entremeadas com as de Che Guevara. Em 2000, havendo ultrapassado a idade-limite de 75 anos, d. Aloísio cumpriu aquilo que o direito canônico lhe impunha: formalizar pedido para que o papa o desobrigasse das funções de bispo; noutros termos, aposentadoria. Embora pudesse conceder-lhe mais cinco anos, como permitira ao leal d. Eugênio Salles, João Paulo 2º decidiu que o caso de d. Aloísio era diferente.
Uma vez decidida a escolha algo complexa do sucessor e atual arcebispo, d. Raymundo Assis Damasceno, concedeu a renúncia antes de decorridos os cinco anos, em 2004.


ALDO PEREIRA, 75, é ex-editorialista e colaborador especial da Folha


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