UOL

São Paulo, segunda-feira, 25 de agosto de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ALÉM DO ORÇAMENTO

Plano Plurianual de Lula não assegura recursos suficientes ao setor, que precisaria de R$ 6 bi em 2004

Ajuste fiscal agrava crise no saneamento

MARTA SALOMON
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Sem tanto alarde, o saneamento básico vive uma crise parecida com a que antecedeu o apagão de energia elétrica em 2001, pelo menos na origem: a falta de investimentos decorrente em grande parte do ajuste nas contas públicas. Não há risco iminente de racionamento, mas as metas de universalização dos serviços de água e esgoto estão claramente ameaçadas. Casos de verminoses e infecções que poderiam ser evitados pressionam gastos com saúde.
"A situação é drástica e, se não forem feitos investimentos, principalmente nos grandes aglomerados urbanos, poderemos ter situações de desabastecimento de água e até epidemias", diz Kátya Calmon, pesquisadora do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) que estuda a evolução dos gastos em saneamento.
Os dados mais recentes mostram uma fatia de 8,5% da população sem acesso à água potável. As famílias mais pobres são maioria, com 2,6 milhões de domicílios nessa situação. E quase a quarta parte dos domicílios brasileiros não tem acesso à coleta de esgoto nem a fossas adequadas; em 81% deles vivem famílias com renda de até cinco salários mínimos.
Ou seja, falta saneamento justamente entre os mais pobres ou moradores de municípios pequenos -aqueles que menos interessam aos empresários caso o governo vença outro problema: a inexistência de regras claras para os investimentos privados no setor, o tal marco regulatório.
Estudo encomendado pelo Ministério das Cidades ao consórcio JNS-Acquaplan estima em R$ 178,4 bilhões, por baixo, os investimentos necessários para universalizar o abastecimento de água e o acesso ao esgoto no país até 2024. O estudo propõe investimentos crescentes nos próximos 20 anos, partindo de R$ 6 bilhões no ano que vem para depois chegar ao dobro desse valor.
Mas a conta já não fecha no PPA, o Plano Plurianual de Investimentos para o período de 2004 a 2007, cujo projeto será encaminhado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Congresso nesta semana. Dos cerca de R$ 5 bilhões previstos por ano no PPA, grande parte depende do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), a maior fonte de financiamento do setor. Ela secou desde 1998, sob uma forte restrição de crédito ao setor público. Os municípios, por exemplo, estão proibidos de receber empréstimos.
O governo também conta com uma outra parcela tão importante quanto o FGTS, de R$ 1,8 bilhão por ano, em investimentos com recursos próprios das companhias de saneamento. Mas a Aesbe (Associação das Empresas de Saneamento Básico Estaduais) avalia que o número é irreal diante do aumento do custo dos serviços, do reajuste das tarifas abaixo da inflação e até da crescente inadimplência dos consumidores. "Não temos todos os recursos para universalizar os serviços de saneamento em 20 anos, e a iniciativa privada não se interessa pelos mais pobres", diz o secretário de Saneamento do Ministério das Cidades, Abelardo Oliveira Filho.

Década perdida
O secretário acha forte a expressão "apagão no saneamento", mas são igualmente dramáticas as referências contidas no relatório "O desafio da universalização do saneamento ambiental no Brasil", produzido pelo ministério.
"Nos últimos oito anos não houve nenhuma política governamental para o setor, sendo um sinal claro de que a administração anterior acreditava que a privatização iria resolver os problemas de universalização do saneamento brasileiro, o que é um grave equívoco", diz um trecho do documento, que classifica de "completamente irregulares" e "pífios" os gastos federais no setor nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, cuja meta era universalizar o saneamento até 2010.
O primeiro ano de governo Lula não vai ter um desempenho muito diferente no quesito investimentos em saneamento. O dinheiro disponível no Ministério das Cidades (menos de R$ 250 milhões) está pagando contas pendentes da gestão FHC.
O Ministério da Saúde, responsável pelo saneamento em municípios menores, espera gastar até o final do ano R$ 436 milhões. E, embora o governo tenha lançado mão de brechas para começar a usar os recursos do FGTS, há um longo caminho entre as contratações e a liberação do dinheiro. Até agora, são R$ 494 milhões de créditos em fase de aprovação e outros R$ 2,2 bilhões em análise.
Relatório produzido neste ano pelo Tribunal de Contas da União mostra que dinheiro não é tudo quando se fala de saneamento. O número de internações por diarréia aguda ou esquistossomose causadas por má qualidade da água não caiu muito depois de R$ 2 bilhões gastos em cerca de 1.700 municípios entre 1999 e 2001.
Ações muito pulverizadas -até hoje os gastos são diluídos em 24 programas de sete ministérios diferentes e inúmeras emendas de parlamentares para suas bases eleitorais- e falta de educação das famílias foram motivos apontados pelos técnicos para a falta de resultados. Na auditoria, eles encontraram gente cozinhando em banheiros, o cômodo "mais bonito da casa", e vasos sanitários convertidos em vasos de plantas para não gastar a água, que é cara.

Impasse
O pagamento pelo uso da água é um dos itens em estudo pelo governo para financiar a universalização dos serviços de saneamento, além da tarifa cobrada dos usuários, cujos critérios poderão ser revistos no pacote da Política Nacional de Saneamento Ambiental. O primeiro obstáculo a ser vencido nessa discussão trata de um conflito de poder: de quem é a competência para conceder os serviços de água e esgoto?
O debate opõe governadores e prefeitos há anos, o que paralisa não apenas a definição de uma lei no Congresso como os potenciais investimentos privados no setor. O documento do Ministério das Cidades deixa clara a opção do governo Lula pró-municípios. Para a Aesbe, que representa 24 empresas estaduais de saneamento básico, municipalizar os serviços significa "desmontar" o sistema criado no país desde os anos 70, quando o BNH (Banco Nacional de Habitação) financiou o grande salto em saneamento básico, diz Walder Suriani, superintendente-executivo da associação.


Texto Anterior: Propriedade em MS é invadida por 850 famílias
Próximo Texto: Ministro diz que novo PPA terá metas realistas
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.