São Paulo, segunda-feira, 25 de outubro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ENTREVISTA DA 2ª

SCOTT TUROW

Escritor diz que a aplicação da pena de morte é injusta e está sujeita a "inúmeras falhas" nos EUA

Eleição será decidida na Justiça, afirma advogado "best-seller"

SÉRGIO DÁVILA
DA CALIFÓRNIA

As eleições presidenciais norte-americanas do próximo dia 2 serão decididas nos tribunais, não nas urnas. A afirmação é de um especialista, se não em voto, pelo menos em lei. O advogado e escritor de sucesso Scott Turow, 55, acredita que o mundo verá uma repetição da polêmica legal de 2000, quando a Suprema Corte dos EUA declarou que os votos do Estado da Flórida no colégio eleitoral iriam para George W. Bush, dando-lhe a presidência, embora Al Gore tenha vencido no voto direto no país. "Ambos os lados já mandaram aviões abarrotados de advogados para os Estados em que a disputa está mais apertada", disse ele à Folha.
Scott Turow (pronuncia-se "Turôu') vem percorrendo os EUA para divulgar sua conclusão como membro de uma comissão de Illinois que examinou casos naquele Estado que levaram à pena de morte. "Tal qual ela vem sendo aplicada hoje em dia, a pena capital é injusta, porque sujeita a inúmeras falhas durante o processo judicial." O resultado virou o livrete "Ultimate Punishment: A Lawyer's Reflections on Dealing with the Death Penalty" (a punição extrema: reflexões de um advogado lidando com a pena de morte) (Farrar, Straus and Giroux, 2003).
"Kerry é contra a pena de morte, Bush é a favor, mas nenhum dos dois tocará nesse assunto até o dia 2", disse ele. Leia a seguir o motivo, segundo Turow:
 

Folha - Do ponto de vista legal, o que o sr. acha que vai acontecer nas eleições do dia 2?
Scott Turow -
Não tenha dúvida de que estas eleições serão de novo decididas nos tribunais, não nas urnas. Ambos os lados já mandaram aviões abarrotados de advogados para os Estados em que a disputa está mais apertada, e são vários deles, não só a Flórida. Você vai ver dezenas de ações judiciais sendo abertas tanto por republicanos quanto por democratas em qualquer condado (sistema de divisão administrativa norte-americana dentro dos Estados) em que a vantagem de um dos dois candidatos for menor do que 1% ou 2% no resultado final.

Folha - O sr. acha que esta batalha legal é a herança principal das últimas eleições?
Turow -
Sim. Aquela eleição, vamos chamar de caso Gore versus Bush, foi uma abominação. A decisão da Suprema Corte dos EUA, de ignorar a conclusão da Suprema Corte da Flórida (que dava a vitória a Al Gore) e votar a favor de George W. Bush foi marcada por falácias lógicas. Não consigo entender até hoje como aquela entidade, que defende tão veementemente os direitos individuais de cada Estado, tenha passado por cima da decisão da Suprema da Flórida.
Este caso vai marcar por gerações a maneira como a Suprema Corte americana é vista pela opinião pública, e esta visão é que é uma instância claramente política. Veja que não é uma questão partidária. Você pode concordar com o resultado de 2000 ou não, mas é a Suprema Corte que sai machucada do episódio. Na faculdade de direito, um professor que eu respeitava muito me falou: "Não se iluda, as decisões da Suprema são sempre movidas pela política". Nos meus primeiros anos de formado, eu cheguei a mandar uma carta para ele contestando este argumento, dizendo que minha experiência com aquela instância me mostrava que os juízes sempre decidiam guiados pela lei. Adivinhe quem está rindo por último agora... (risos).

Folha - O que o sr. acha que realmente vai mudar na questão da pena de morte se Bush for reeleito ou se John Kerry ganhar a eleição?
Turow -
John Kerry já disse de uma maneira muito direta que ele é contra a pena de morte, exceto em casos de terrorismo. Já George W. Bush declarou quando governador do Texas que acreditava que nunca, em tempo algum, um inocente tinha sido executado no seu Estado. E ele foi o governador que mais presos mandou à morte.
Dito isso, nenhum dos dois tocou, toca ou voltará a tocar nesse assunto até o dia 2. É o caso do senador democrata, porque ele sabe que a maior parte dos Estados indecisos, que vão definir esta eleição, é de população católica, historicamente contrária à punição. Você também não vai ver Bush batendo nesta tecla porque ele sabe que três dos Estados indecisos, Michigan, Wisconsin e Iowa, não praticam a pena de morte. Nenhum dos dois quer alienar parte de seu eleitorado numa eleição tão disputada assim.

Folha - A Suprema Corte está discutindo agora se é constitucional aplicar a pena de morte em pessoas que eram menores de idade na época em que cometeram o crime. O que o sr. acha que vai acontecer?
Turow -
Fiquei muito impressionado pelo fato de a promotoria que cuida do caso dos atiradores de Washington não ter pedido a pena de morte para o menor, John Lee Malvo. Acho que indica um caminho, uma tendência da sociedade. Qualquer pai que já teve filhos adolescentes em casa sabe que eles estão numa época extremamente maleável e dinâmica. Minha opinião é que a Suprema Corte vai chegar à conclusão de que esta é uma punição inusual e cruel, o que viola a Constituição.

Folha - O sr. acha que as prisões de segurança máxima podem substituir a pena de morte?
Turow -
Acho que não, porque se trata também uma punição inusual e cruel. Eu já visitei várias delas e sei como é a rotina dos presos. Não é humano. Primeiro, você vive num cubículo de concreto fechado por uma porta de aço, com buracos, pelos quais você pode gritar e se comunicar com o preso mais próximo, mas não vê-lo. Uma vez por dia, por controle remoto, o preso tem acesso a um corredor, sai para um outro cubículo sem teto e pode ficar ao ar livre por 45 minutos.
O banho é permitido cinco vezes por semana, sempre sem encontrar ninguém. É muito duro. Mesmo assim, os guardas enfrentam indisciplina, a mais comum com os presos jogando fezes pelos buracos da porta. Pois bem, quem faz isso é castigado com a chamada dieta "nutriloaf", que é o equivalente moderno de pão e água, por dias e dias. Isso pode não matar o preso, mais vai chegar perto. A taxa de tentativa de suicídio é enorme. Isso não é castigo cruel? Se é, fere a Constituição dos EUA.

Folha - Illinois, que após as conclusões de sua comissão acabou comutando a pena de mais de 160 presos de capital para prisão perpétua sem possibilidade de liberdade condicional, inspirou algum outro Estado a fazer o mesmo?
Turow -
Nenhum outro Estado fez algo tão abrangente assim. Os congressistas de Nova Jersey estão tentando, mas o governador vem vetando sistematicamente. Maryland decretou uma moratória nas execuções no governo passado, mas o atual a suspendeu. O caso mais patético é sem dúvida o do Texas, em que o chefe da polícia implorou por uma moratória nas execuções, dizendo que sua equipe de legistas descobriu uma falha enorme em seu laboratório, que pode ter comprometido o resultado de dezenas de casos. Mesmo assim, na semana passada o governo executou mais uma pessoa. O chefe de polícia está dizendo "Por favor, não executem!" e nem assim...

Folha - Os problemas pessoais do então governador de Illinois atrapalharam a sua comissão?
Turow -
O ex-governador George Ryan está sendo acusado de corrupção durante seu cargo anterior, como secretário de Governo. Eu não digo que ele seja santo, mas acho suspeito as acusações terem aparecido justamente depois de ele ter decretado a moratória da pena de morte, para que nós pudéssemos investigar os casos dos condenados. Além disso, Ryan é um homem polêmico, visitou Cuba durante seu mandato e liberalizou a maneira com que o Estado lida com casos de aborto.

Folha - Os EUA são a única economia moderna ocidental a adotar a pena de morte. Os outros países são ditaduras ou regimes fechados como Cuba, Irã e Coréia do Norte. O sr. não acha que os americanos estão com a turma errada?
Turow -
A principal comparação que se faz é com a Europa Ocidental, que baniu a pena faz tempo. Bom, primeiro há que se fazer distinções entre as duas comunidades. A taxa de crime na Europa é cerca de 30% a dos EUA, então a população lá não tem a mesma ansiedade da daqui em relação a este assunto. Segundo, a legislação relacionada ao porte de arma é muito mais rigorosa do que aqui, onde todo mundo pode ter uma arma, e isso tem muito a ver com as taxas de crime.
O outro aspecto é cultural. Em todos os países em que a pena de morte foi abolida na Europa Ocidental, a maioria da população apoiava esta medida. Ou seja, ela veio depois da opinião pública, não antes. Eu eu tenho uma teoria, segundo a qual eles só aboliram a pena de morte como povo depois de ver a experiência democrática se descontrolar. Não se esqueça de que Hitler foi eleito, tivemos Mussolini, Franco, Salazar, os europeus sentiram na pele o que acontece quando a democracia dá errado, não querem correr o mesmo risco de novo. Acho que o que um professor de direito alemão de 90 anos me disse resume tudo: "Depois da Segunda Guerra, nós jamais poderemos dar ao Estado o poder de matar legalmente de novo". No Brasil não há pena de morte, há?

Folha - Não.
Turow -
Eu sei disso. E por dois motivos. Primeiro, porque o seu imperador se condoeu com o caso de um inocente condenado à forca e executado e decidiu suspender a pena [No dia 6 de março de 1855, o fazendeiro Manoel da Motta Coqueiro foi enforcado na Praça da Luz de Macaé (RJ) depois de ter sido condenado pelo assassinato de uma família de oito colonos em uma de suas propriedades; a Justiça descobriria depois que ele era inocente; abalado, o imperador Pedro 2º decidiu comutar sistematicamente todos os casos seguintes nas chamadas penas de Galés perpétuas, em que o condenado era removido às galeras para remar até o fim da vida; foi o fim informal da pena de morte no Brasil, hoje proibida pela Constituição de 1988].
Depois, porque vocês são um país de maioria católica. E, você sabe, os católicos têm este "defeito" de acreditar que apenas uma pessoa pode tirar a vida da outra, e essa pessoa é o cara lá de cima.


Texto Anterior: Espião se disfarçou de consultor
Próximo Texto: O autor: Turow integrou comissão sobre pena de morte
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.