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ENTREVISTA DA 2ª
SCOTT TUROW
Escritor diz que a aplicação da pena de morte é injusta e está sujeita a "inúmeras falhas" nos EUA
Eleição será decidida na Justiça, afirma advogado "best-seller"
SÉRGIO DÁVILA
DA CALIFÓRNIA
As eleições presidenciais norte-americanas do próximo dia 2 serão decididas nos tribunais, não
nas urnas. A afirmação é de um
especialista, se não em voto, pelo
menos em lei. O advogado e escritor de sucesso Scott Turow, 55,
acredita que o mundo verá uma
repetição da polêmica legal de
2000, quando a Suprema Corte
dos EUA declarou que os votos do
Estado da Flórida no colégio eleitoral iriam para George W. Bush,
dando-lhe a presidência, embora
Al Gore tenha vencido no voto direto no país. "Ambos os lados já
mandaram aviões abarrotados de
advogados para os Estados em
que a disputa está mais apertada",
disse ele à Folha.
Scott Turow (pronuncia-se "Turôu') vem percorrendo os EUA
para divulgar sua conclusão como
membro de uma comissão de Illinois que examinou casos naquele
Estado que levaram à pena de
morte. "Tal qual ela vem sendo
aplicada hoje em dia, a pena capital é injusta, porque sujeita a inúmeras falhas durante o processo
judicial." O resultado virou o livrete "Ultimate Punishment: A
Lawyer's Reflections on Dealing
with the Death Penalty" (a punição extrema: reflexões de um advogado lidando com a pena de
morte) (Farrar, Straus and Giroux, 2003).
"Kerry é contra a pena de morte, Bush é a favor, mas nenhum
dos dois tocará nesse assunto até
o dia 2", disse ele. Leia a seguir o
motivo, segundo Turow:
Folha - Do ponto de vista legal, o
que o sr. acha que vai acontecer
nas eleições do dia 2?
Scott Turow - Não tenha dúvida
de que estas eleições serão de novo decididas nos tribunais, não
nas urnas. Ambos os lados já
mandaram aviões abarrotados de
advogados para os Estados em
que a disputa está mais apertada,
e são vários deles, não só a Flórida. Você vai ver dezenas de ações
judiciais sendo abertas tanto por
republicanos quanto por democratas em qualquer condado (sistema de divisão administrativa
norte-americana dentro dos Estados) em que a vantagem de um
dos dois candidatos for menor do
que 1% ou 2% no resultado final.
Folha - O sr. acha que esta batalha legal é a herança principal das
últimas eleições?
Turow - Sim. Aquela eleição, vamos chamar de caso Gore versus
Bush, foi uma abominação. A decisão da Suprema Corte dos EUA,
de ignorar a conclusão da Suprema Corte da Flórida (que dava a
vitória a Al Gore) e votar a favor
de George W. Bush foi marcada
por falácias lógicas. Não consigo
entender até hoje como aquela
entidade, que defende tão veementemente os direitos individuais de cada Estado, tenha passado por cima da decisão da Suprema da Flórida.
Este caso vai marcar por gerações a maneira como a Suprema
Corte americana é vista pela opinião pública, e esta visão é que é
uma instância claramente política. Veja que não é uma questão
partidária. Você pode concordar
com o resultado de 2000 ou não,
mas é a Suprema Corte que sai
machucada do episódio. Na faculdade de direito, um professor que
eu respeitava muito me falou:
"Não se iluda, as decisões da Suprema são sempre movidas pela
política". Nos meus primeiros
anos de formado, eu cheguei a
mandar uma carta para ele contestando este argumento, dizendo
que minha experiência com aquela instância me mostrava que os
juízes sempre decidiam guiados
pela lei. Adivinhe quem está rindo
por último agora... (risos).
Folha - O que o sr. acha que realmente vai mudar na questão da pena de morte se Bush for reeleito ou
se John Kerry ganhar a eleição?
Turow - John Kerry já disse de
uma maneira muito direta que ele
é contra a pena de morte, exceto
em casos de terrorismo. Já George
W. Bush declarou quando governador do Texas que acreditava
que nunca, em tempo algum, um
inocente tinha sido executado no
seu Estado. E ele foi o governador
que mais presos mandou à morte.
Dito isso, nenhum dos dois tocou, toca ou voltará a tocar nesse
assunto até o dia 2. É o caso do senador democrata, porque ele sabe
que a maior parte dos Estados indecisos, que vão definir esta eleição, é de população católica, historicamente contrária à punição.
Você também não vai ver Bush
batendo nesta tecla porque ele sabe que três dos Estados indecisos,
Michigan, Wisconsin e Iowa, não
praticam a pena de morte. Nenhum dos dois quer alienar parte
de seu eleitorado numa eleição
tão disputada assim.
Folha - A Suprema Corte está discutindo agora se é constitucional
aplicar a pena de morte em pessoas
que eram menores de idade na
época em que cometeram o crime.
O que o sr. acha que vai acontecer?
Turow - Fiquei muito impressionado pelo fato de a promotoria
que cuida do caso dos atiradores
de Washington não ter pedido a
pena de morte para o menor,
John Lee Malvo. Acho que indica
um caminho, uma tendência da
sociedade. Qualquer pai que já teve filhos adolescentes em casa sabe que eles estão numa época extremamente maleável e dinâmica.
Minha opinião é que a Suprema
Corte vai chegar à conclusão de
que esta é uma punição inusual e
cruel, o que viola a Constituição.
Folha - O sr. acha que as prisões
de segurança máxima podem substituir a pena de morte?
Turow - Acho que não, porque se
trata também uma punição inusual e cruel. Eu já visitei várias delas e sei como é a rotina dos presos. Não é humano. Primeiro, você vive num cubículo de concreto
fechado por uma porta de aço,
com buracos, pelos quais você pode gritar e se comunicar com o
preso mais próximo, mas não vê-lo. Uma vez por dia, por controle
remoto, o preso tem acesso a um
corredor, sai para um outro cubículo sem teto e pode ficar ao ar livre por 45 minutos.
O banho é permitido cinco vezes por semana, sempre sem encontrar ninguém. É muito duro.
Mesmo assim, os guardas enfrentam indisciplina, a mais comum
com os presos jogando fezes pelos
buracos da porta. Pois bem, quem
faz isso é castigado com a chamada dieta "nutriloaf", que é o equivalente moderno de pão e água,
por dias e dias. Isso pode não matar o preso, mais vai chegar perto.
A taxa de tentativa de suicídio é
enorme. Isso não é castigo cruel?
Se é, fere a Constituição dos EUA.
Folha - Illinois, que após as conclusões de sua comissão acabou comutando a pena de mais de 160
presos de capital para prisão perpétua sem possibilidade de liberdade condicional, inspirou algum
outro Estado a fazer o mesmo?
Turow - Nenhum outro Estado
fez algo tão abrangente assim. Os
congressistas de Nova Jersey estão tentando, mas o governador
vem vetando sistematicamente.
Maryland decretou uma moratória nas execuções no governo passado, mas o atual a suspendeu. O
caso mais patético é sem dúvida o
do Texas, em que o chefe da polícia implorou por uma moratória
nas execuções, dizendo que sua
equipe de legistas descobriu uma
falha enorme em seu laboratório,
que pode ter comprometido o resultado de dezenas de casos. Mesmo assim, na semana passada o
governo executou mais uma pessoa. O chefe de polícia está dizendo "Por favor, não executem!" e
nem assim...
Folha - Os problemas pessoais do
então governador de Illinois atrapalharam a sua comissão?
Turow - O ex-governador George Ryan está sendo acusado de
corrupção durante seu cargo anterior, como secretário de Governo. Eu não digo que ele seja santo,
mas acho suspeito as acusações
terem aparecido justamente depois de ele ter decretado a moratória da pena de morte, para que
nós pudéssemos investigar os casos dos condenados. Além disso,
Ryan é um homem polêmico, visitou Cuba durante seu mandato
e liberalizou a maneira com que o
Estado lida com casos de aborto.
Folha - Os EUA são a única economia moderna ocidental a adotar a
pena de morte. Os outros países
são ditaduras ou regimes fechados
como Cuba, Irã e Coréia do Norte. O
sr. não acha que os americanos estão com a turma errada?
Turow - A principal comparação
que se faz é com a Europa Ocidental, que baniu a pena faz tempo.
Bom, primeiro há que se fazer distinções entre as duas comunidades. A taxa de crime na Europa é
cerca de 30% a dos EUA, então a
população lá não tem a mesma
ansiedade da daqui em relação a
este assunto. Segundo, a legislação relacionada ao porte de arma
é muito mais rigorosa do que
aqui, onde todo mundo pode ter
uma arma, e isso tem muito a ver
com as taxas de crime.
O outro aspecto é cultural. Em
todos os países em que a pena de
morte foi abolida na Europa Ocidental, a maioria da população
apoiava esta medida. Ou seja, ela
veio depois da opinião pública,
não antes. Eu eu tenho uma teoria, segundo a qual eles só aboliram a pena de morte como povo
depois de ver a experiência democrática se descontrolar. Não se esqueça de que Hitler foi eleito, tivemos Mussolini, Franco, Salazar,
os europeus sentiram na pele o
que acontece quando a democracia dá errado, não querem correr
o mesmo risco de novo. Acho que
o que um professor de direito alemão de 90 anos me disse resume
tudo: "Depois da Segunda Guerra, nós jamais poderemos dar ao
Estado o poder de matar legalmente de novo". No Brasil não há
pena de morte, há?
Folha - Não.
Turow - Eu sei disso. E por dois
motivos. Primeiro, porque o seu
imperador se condoeu com o caso
de um inocente condenado à forca e executado e decidiu suspender a pena [No dia 6 de março de
1855, o fazendeiro Manoel da
Motta Coqueiro foi enforcado na
Praça da Luz de Macaé (RJ) depois de ter sido condenado pelo
assassinato de uma família de oito
colonos em uma de suas propriedades; a Justiça descobriria depois
que ele era inocente; abalado, o
imperador Pedro 2º decidiu comutar sistematicamente todos os
casos seguintes nas chamadas penas de Galés perpétuas, em que o
condenado era removido às galeras para remar até o fim da vida;
foi o fim informal da pena de
morte no Brasil, hoje proibida pela Constituição de 1988].
Depois, porque vocês são um
país de maioria católica. E, você
sabe, os católicos têm este "defeito" de acreditar que apenas uma
pessoa pode tirar a vida da outra,
e essa pessoa é o cara lá de cima.
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