São Paulo, terça-feira, 25 de novembro de 2003

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JANIO DE FREITAS

As crias das ditaduras

Por alguma das tantas razões obscuras do jornalismo brasileiro, por aqui não mereceu nem a mínima atenção a notícia que, no domingo, assombrou a Argentina, e não era para menos. Um tanto assombrados, a rigor, os argentinos -população e governo Kirchner- já estavam com a onda cada vez maior e mais indomável de sequestros, convencionais e sobretudo do tipo relâmpago.
Os argentinos já sabem que investigações muito sigilosas chegaram a um primeiro resultado (ou só esse foi liberado ao conhecimento público). Centenas de telefonemas, talvez mesmo uns 700, dados por sequestradores tiveram, em uma das pontas, um telefone que ninguém imaginaria: é do comando do Exército argentino.
A degenerescência dos setores incumbidos da segurança nacional, dos níveis policiais aos mais elevados, é um legado que tardará muito a se apagar nos países latino-americanos vitimados pelo ciclo das ditaduras militares. O caso brasileiro é menos grave que o argentino e o chileno quanto ao setor militar, mas muito mais grave quanto à degradação das polícias. E, ao que se pode supor, equivalente aos demais nas ramificações de agentes dos "extintos" serviços de espionagem interna (os SNIs de cá e de lá) já no regime democratizado de tais países.
No Brasil, as gravações telefônicas investigadas levaram, quase todas, a ex-agentes do SNI e dos serviços militares de informação. Por isso as investigações deram em nada: ou os autores das gravações ilegais continuam ligados aos serviços controlados por militares, e recebem proteção em vez da devida punição, ou é gente que sempre sabe o bastante, inclusive por uso de gravações, para se fazer temido e não ameaçado. Assim se explica que o Brasil seja, de anos para cá, o paraíso dos grampeadores.
Mas nem só de grampeadores se faz a continuação dos vícios e práticas criminosas por integrantes dos porões ditatoriais. Entre os já apanhados pela Operação Anaconda em São Paulo, por exemplo, não falta quem tenha desfrutado do direito de abusos de toda a espécie, por servir à ditadura, e não abriu mão da mesma liberdade quando a ordem das coisas se alterou. Alguns destes podem se dar mal, por exagero ou por acaso.
O que se alterou de fato, nos últimos anos, foi mais nas formalidades do que nas instituições. O SNI, inexistente no governo Fernando Henrique, jamais deixou de existir. De início, ativo no próprio Palácio do Planalto, sob o nome de Secretaria de Segurança Institucional, o que explica os tantos telefonemas do então juiz Nicolau dos Santos Neto para militares da secretaria. Os agentes do SNI não haviam perdido o emprego. Mais tarde reassegurado ou ampliado com a criação da Abin.
Mesmo que falando em "serviço democrático" da Abin, o governo está apenas continuando a retomada a que Fernando Henrique deu início com a Abin. Por tudo o que consta, a Abin do governo está repleta das figuras físicas e jurídicas do SNI. E isso não tem significações apenas para o presente, mas para o futuro que esses serviços costumam praticar fora das suas atividades regulares.


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