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ENTREVISTA DA 2ª
ELZA BERQUÓ
Para demógrafa, programa é desnecessário porque a taxa de crescimento populacional está caindo
"País não precisa de política de planejamento familiar"
CLÁUDIA COLLUCCI
DA REPORTAGEM LOCAL
O país não precisa de uma política de planejamento familiar, e
sim de uma política de desenvolvimento. É o que acredita a demógrafa Elza Berquó, 70, presidente
da Comissão Nacional de População e Desenvolvimento.
Ela considera que a proposta de
incluir o planejamento familiar
entre as contrapartidas exigidas
das famílias beneficiadas pelo
programa Bolsa-Família, feita por
Emília Fernandes antes de sua demissão da Secretaria Especial de
Políticas de Mulheres, revela um
"total desconhecimento" do governo. "É ignorar completamente
o fato de que, no Brasil, a taxa de
crescimento populacional vem
declinando desde a década de 70."
Procurada pela Folha, Fernandes
não quis comentar as declarações
de Berquó.
A demógrafa afirma que a taxa
de fecundidade no Brasil caiu em
todas as regiões, inclusive no Norte e no Nordeste (quedas de 23,8%
e 27%, respectivamente). Segundo ela, 44% das mulheres em idade reprodutiva no país têm menos de dois filhos -inferior ao nível de reposição. Apenas 6,2% delas têm quatro filhos ou mais.
Para Berquó, é possível que, no
futuro, a continuar a queda da taxa de fecundidade, o país tenha
que estimular a reprodução, seja
incentivando as mulheres em idade fértil a ter mais filhos, seja ajudando aquelas com problemas de
infertilidade. A seguir, trechos da
entrevista dada à Folha.
Folha - O debate sobre planejamento familiar como forma de
combate à pobreza ressurgiu recentemente após a ex-ministra
Emília Fernandes cogitar incluir a
medida entre as contrapartidas
exigidas das famílias beneficiadas
pelo programa Bolsa-Família. O
que a sra. pensa sobre isso?
Elza Berquó - É um total desconhecimento do que acontece no
mundo e, em especial, no Brasil.
Há um tempo, tentaram ressuscitar a idéia da explosão demográfica. Talvez porque nos grotões de
pobreza que apareciam na telinha
sempre havia muitas crianças. Em
primeiro lugar, ninguém sabe se
todas aquelas crianças eram filhos
da mesma mãe. E aí vários formadores de opinião começaram a dizer que o problema do Brasil era a
explosão demográfica. É ignorar
completamente o fato de que, no
Brasil, a taxa de crescimento populacional vem declinando sistematicamente desde a década de
70. O planejamento familiar tem
que ser visto no macro da saúde
integral. Tem que abranger muito
mais dimensões do que essa de dizer "vamos lá dizer que essas mulheres não recebem o Bolsa-Família se não houver redução no número de filhos". Isso é fácil de dizer, difícil de comprovar e não resolve nada.
Folha - Mas isso tem um forte
apelo popular. As declarações da
ex-ministra repercutiram muito.
Berquó - Falta muito conhecimento. Não se pode cobrar isso da
população, mas do governo, sim.
O governo tem obrigação de saber
ou, se não sabe, de se informar.
Precisamos fazer uma limpeza de
terreno na área das idéias e das
concepções para que as pessoas
possam entender o que é direito
sexual e o que é direito reprodutivo. Isso está na alçada dos direitos
humanos. Como garantir? Com
informação, com educação e com
acesso a meios para isso.
Folha - A decisão final do governo
sobre a questão do planejamento
familiar foi de ampliar as informações à população. É o caminho?
Berquó - Acho que informação
nunca é demais. O que deveria ser
feito é uma ampla campanha sobre o sexo com dupla proteção,
tanto para a concepção como para a Aids. É preciso juntar essas
duas questões. Tudo isso é divorciado de pobreza. Hoje nós já estamos com 44% das mulheres em
idade reprodutiva no país com fecundidade abaixo de dois filhos.
Só temos uma fecundidade maior
[mais de quatro filhos por mulher] nos bolsões de pobreza. Mas
isso só responde a 6,2% do total.
No Brasil, entre 1991 e 2000, a queda da fecundidade foi de 12%. No
Norte, ela passou de 4,2 filhos para 3,2 filhos, uma queda de 23,8%.
No Nordeste, de 3,7 para 2,7 filhos, uma queda de 27%. No Sudeste, caiu muito mais. Na área
rural, a queda foi de 19%.
Folha - Por que a taxa de fecundidade cai tanto?
Berquó - Por vários motivos.
Antigamente, as famílias tinham
muitos filhos porque sabiam que,
com a alta taxa de mortalidade infantil, pelo menos a metade iria
morrer. E precisavam que uma parte sobrevivesse
para sustentar a
família na velhice.
Com a Previdência Social, o governo assume esse
papel. Outro fator
é a questão do crédito direto ao consumidor, que
também é da década de 70. Isso
significa que as
pessoas passaram
a ter aspirações de
consumo e a pensar um pouco
mais se vão ter
três filhos e comprar alguma coisa,
ou se vão ter dois.
Além disso, as
mulheres passaram a ficar muito
mais expostas ao
setor da saúde e
começaram a receber informações sobre as pílulas, laqueadura etc. O quarto fator
fundamental foi a verdadeira revolução das telecomunicações no
Brasil. Isso tudo acontece de 70
para a frente. No momento em
que os sinais de TV alcançam os
rincões mais afastados, você veicula valores. Nas telenovelas, por
exemplo, as famílias são sempre
pequenas.
Folha - Como estão os serviços de
planejamento familiar hoje? As
mulheres estão conseguindo ter
acesso aos contraceptivos?
Berquó - Na verdade, sei muito
pouco sobre o que está acontecendo. Estamos num vazio de informação da famosa PNDS (Pesquisa Nacional de
Demografia e Saúde). A última foi
de 96. Achamos
essa pesquisa fundamental porque
ela atualiza, em
termos nacionais,
como está a contracepção. Fizemos uma pesquisa acompanhando
homens e mulheres no momento
em que chegavam
para fazer a esterilização. Observamos que só 30%
conseguiram.
Muitos dos médicos não concordavam com os critérios da portaria
que autoriza a laqueadura, ou porque achavam que
as mulheres eram
muito jovens ou porque tinham
poucos filhos. Além disso, como
as laqueaduras são feitas em hospitais, as mulheres têm de competir com os leitos de outras especialidades. Os homens têm mais sorte porque as vasectomias podem
ser feitas em ambulatórios.
Folha - Existe algum tipo de política de planejamento familiar que
o país deveria adotar?
Berquó - Não. Durante muitos e
muitos anos a chamada esquerda
deste país, juntamente com os
movimentos de mulheres, conseguiu impedir que o país tivesse
uma política de população. É
muito complicado porque uma
política de população acaba intervindo, em última análise, nos direitos das pessoas de ir e vir, de se
reproduzir ou não se reproduzir.
Esses dois elementos são básicos
na questão demográfica.
Você quer povoar, tudo bem.
Os Estados dão incentivos para
atrair as indústrias, levar o desenvolvimento. É mais fácil isso do
que impor que as pessoas tenham
que ficar lá ou aqui. Você dá o incentivo e as pessoas se movimentam. Não podemos interferir nesse direito. O país não precisa de
política de população. Ele precisa
de política de desenvolvimento.
Folha - Vemos hoje grandes cidades, como São Paulo, saturadas em
vários setores. O país deveria investir numa política de ocupação
racional do território?
Berquó - Não há dúvidas de que
precisa sair do eixo. Mas é necessário saber se há condições. Acho
que, de um lado, com a informática desenvolvida, você pode ter indústrias de tecnologia de alto padrão que não precisam estar nas
grandes cidades.
Há outras formas de tentar um
desenvolvimento do Nordeste,
como a transposição do rio São
Francisco. Não sei se isso é possível do ponto de vista científico,
mas, se for, trará grandes benefícios. O turismo no Nordeste, se
for bem implementado, também
trará muitas melhorias. Temos
que dar força para que o país se
desenvolva em outra direção.
Folha - Hoje há uma inversão da
porta giratória da migração em São
Paulo, com mais pessoas saindo do
que entrando. Isso deve persistir?
Berquó - Não tenho dúvida de
que sim. Por outro lado, a cara da
cidade está mudando. Você vê coreanos, latino-americanos. Você
está substituindo um pouco os
nordestinos. Todo ano, por volta
de 70 mil nordestinos deixam a cidade. Mas, mais do que isso, a cidade é caracterizada pelo fluxo de
entrada e saída.
Folha - Pesquisa da Seade mostra
que São Paulo terá 2 milhões de
pessoas com mais de 60 anos em
2025, enquanto a parcela de jovens
e adultos encolherá. É uma tendência nacional?
Berquó - Sim, é uma tendência
nacional. O fato
de o índice de população idosa vir
crescendo na população total é diretamente ligado à
queda da fecundidade. Como nascem menos crianças relativamente,
o grupo de menos
de 15 anos vai pesando cada vez
menos e o outro
grupo vai pesando
cada vez mais.
Folha - Qual é o
impacto disso na
mudança demográfica da cidade
de São Paulo e do
país?
Berquó - O que
no futuro vai afetar é o que está
acontecendo no
Primeiro Mundo.
Como a fecundidade caiu muito e
como a população
envelheceu muito, além de a expectativa de vida ter se elevado,
eles não têm mão-de-obra jovem.
Isso é um problema que enfrentaremos lá na frente, por volta de
2025, 2030. Na Europa, há mais de
dez anos o número absoluto de
idosos já ultrapassou o de jovens.
Nosso país tem um elemento relativamente novo, chamado de rejuvenescimento da fecundidade.
Nos países desenvolvidos, são
baixíssimas essas proporções, não
chegam a 10%.
As mulheres brasileiras de 35
anos ou mais estão tendo cada vez
menos filhos. O pico da fecundidade, em 1980, estava entre 25 e 29
anos. Em 1991, ele recuou uma faixa etária, passando a ser entre 20 e
24 anos. Em 2002, permaneceu aí.
Por outro lado, há aumento na
faixa mais jovem ainda [20% das
gestações são de adolescentes].
Isso mostra que ainda temos
um fôlego, muito embora essa população jovem vá pesar cada vez
menos e a outra, cada vez mais. É
possível que, no meio do caminho, observando o que outros
países estão enfrentando, possamos ter elementos para que essas
mulheres de 25 a 39 anos voltem a
ter interesse em se reproduzir. Os
parceiros têm que ser generosos
no sentido de um ajudar ao outro
porque, do contrário, as mulheres
não vão querer se reproduzir.
Folha - Mas também tem o fator
infertilidade. As mulheres estão
deixando para engravidar mais
tarde e muitas encontram dificuldades de gravidez...
Berquó - É um ponto importante
porque, como a expectativa de vida se amplia cada vez mais, a pessoa pode viver muitas experiências: ou adia o casamento ou, se
antes não queria filhos, agora valoriza a reprodução. Também esse direito reprodutivo tem de ser
satisfeito.
Eu não sei se é um assunto de
saúde pública. Não sei se há recursos. Mas pode ser que um dia,
quando o país enfrentar uma baixíssima taxa de fecundidade, como
já acontece em outros países, você
vá estimular, sim.
Hoje temos
muitas mulheres
tentando uma reprodução após os
40 anos, ou até antes, que não encontram no serviço público a possibilidade de tratamento, de um
diagnóstico correto ou até de um
bebê de proveta.
Folha - A sra. é
uma das pioneiras
no estudo da população negra no Brasil. Como vê essa
questão das cotas
nas universidades?
Berquó - Sou a
favor das ações
afirmativas. Não
sei se o caminho
são exatamente as
cotas, mas tem que ter para começar. Se você deixar as coisas agirem normalmente, você não sai
do caos da desigualdade. A população negra está na base da pirâmide social. É claro que vão encontrar obstáculos, mas é importante porque a identidade negra
está firme. Se você se identifica
com a população negra, ou afrodescendente, você vai lá disputar
essas cotas. Quando essa roda estiver girando, você não vai precisar mais disso porque essas pessoas vão estar preparadas para
enfrentar o vestibular. Tem que
ter cotas, senão não entra.
Folha - O reitor da USP, Adolpho
José Melfi, disse não ser simpático
à adoção de cotas para negros porque isso causaria mais discriminação. Existe esse perigo?
Berquó - O negro já é discriminado na sociedade, esteja na universidade ou não. Ele já está acostumado, mas aí estará discriminado dentro da universidade. Acho
que ele está disposto a correr esse
risco. Ações afirmativas são uma
das possibilidades de desconstruir o racismo no Brasil.
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