São Paulo, sábado, 26 de outubro de 2002

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EUA esquecem "anexação" e ressaltam cooperação de Lula

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

Em demonstração de boa vontade, o governo norte-americano prefere esquecer que Luiz Inácio Lula da Silva, o candidato do PT virtualmente eleito presidente, falou em "anexação" do Brasil pelos Estados Unidos como consequência do processo de negociação da Alca (Área de Livre Comércio das Américas).
A ênfase norte-americana está posta em outra declaração de Lula, a de que vai, sim, continuar engajado na negociação, ainda que, nela, queira defender firmemente os interesses brasileiros.
"Todos os 34 países farão a mesma coisa", não deixou de ironizar um alto funcionário do comércio exterior norte-americano, em teleconferência ontem de manhã, na qual a regra era não citar o nome. É uma alusão ao número de países que comporão a Alca (toda a América, exceto Cuba).
O funcionário lembrou que, a partir de 1º de novembro, Brasil e EUA assumem a presidência conjunta do processo negociador.
"É uma ótima oportunidade para que o Brasil exerça sua liderança", afirmou, em mensagem cifrada, mas óbvia: se Lula não quer a "anexação" do Brasil, a maneira de evitá-la não é sair da negociação, mas aproveitar a co-presidência para direcioná-la no rumo pretendido pelo novo governo.

Co-presidência
Quem preside uma negociação tem sempre a possibilidade de encaminhá-la de acordo com seus interesses. No caso da Alca, Brasil e EUA têm tido, em geral, posições conflitantes, exatamente pela defesa de seus interesses específicos. Como serão co-presidentes até o fim da negociação, em 2005, o potencial de conflito aumenta.
Tanto aumenta que, na entrevista de ontem, o funcionário deixou claro: as conversas com autoridades brasileiras em torno da co-presidência têm sido muito cautelosas, para não tratar de temas de "sensibilidade política".
Por isso, o que está sendo discutido é muito mais a logística da co-presidência ("como vamos nos comunicar um com o outro", por exemplo, diz o entrevistado).
Parece óbvio que a sensibilidade política, do lado brasileiro, aumentará em um eventual governo Lula, o que tornará a presidência conjunta um exercício ainda mais complexo.
De todo modo, o funcionário ouvido ontem não deu maior importância ao fato de que o novo governo brasileiro terá apenas 45 dias, desde a posse, para apresentar a oferta inicial de abertura do seu mercado (o prazo é 15 de fevereiro de 2003).
"Trata-se de um cronograma decidido por todos os países e para o qual os trabalhos preparatórios já estão adiantados (em cada país)", afirmou.

A Antártida
O funcionário aproveitou para fazer uma segunda ironia, ao comentar a declaração de Robert Zoellick, chefe do USTr (United States Trade Representative, uma espécie de ministério do comércio exterior dos EUA), de que o Brasil teria que escolher entre a Alca e a Antártida. "Posso assegurar que não é verdadeira a informação de que os Estados Unidos pretendem incluir a Antártida na Alca", brincou.
A frase de Zoellick, reproduzida pela Folha na terça-feira da semana passada, provocou irada reação de Lula, que chamou o funcionário de "sub do sub do sub" (na verdade, o posto de Zoellick tem status de ministro).
Ontem, o representante dos EUA disse que o ruído provocado por ambas as declarações não estava prejudicando o ambiente para a reunião ministerial da Alca marcada para dia 1º próximo em Quito, capital equatoriana -reuniões ministeriais são a máxima instância do processo negociador.
De todo modo, o funcionário deixou claro que a liberalização do setor agrícola continua sendo o nó central no processo.
Os EUA fizeram uma proposta que o governo brasileiro admite ser "ambiciosa" na área agrícola, mas ela vale só para a negociação global, no âmbito da OMC (Organização Mundial do Comércio).
A proposta agrícola norte-americana para a Alca ainda está em elaboração, mas o alto funcionário já adiantou que os EUA "não vão se desarmar unilateralmente em face dos subsídios europeus".
Posto de outra forma: só se todos os países que protegem suas agriculturas (o que inclui, além dos europeus, o Japão e a Coréia do Sul) reduzirem seu arsenal, os Estados Unidos o farão também no âmbito da Alca.



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