São Paulo, quinta-feira, 27 de janeiro de 2005

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ARTIGO

Entre Davos e Porto Alegre existem convergências possíveis

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

Leia abaixo texto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva publicado na revista do Fórum Econômico Mundial, que acontece em Davos, na Suíça.
 

A METÁFORA do século assumiu proporções devastadoras no maremoto que devastou o sul da Ásia no final de 2004. O violento tsunami nos fez lembrar que o isolamento histórico e geográfico é impossível e que todas as fronteiras são comuns. A nova geopolítica da existência humana dá provas de uma capacidade sem precedentes de luta pelos grandes interesses coletivos e exigência de soluções que sejam coordenadas e solidárias.
Não se trata mais de, em oposição ao inevitável extravasamento das fronteiras pela globalização, lançar apelos pela auto-suficiência e o isolacionismo. Trata-se, muito mais, de reforçar as fronteiras com uma convergência de recursos e de direitos, ao mesmo tempo em que se reafirma o componente humano da economia e do progresso. A partir dessa nova perspectiva, devemos examinar outra área de devastação evidente nas estatísticas de nossa época: um tremor de terra silencioso que repercute desde os abismos da desigualdade global e que recoloca o imenso desafio de convencer os povos do mundo a se engajarem em favor de um projeto de cooperação em massa no século 21.
A abundância e a injustiça foram as maiores características do século 20. Nos últimos 40 anos, o PIB mundial dobrou e, ao mesmo tempo, a desigualdade econômica entre o centro e a periferia do planeta triplicou. Os 25% mais ricos do mundo consomem 80% dos recursos disponíveis.
Isso acontece enquanto quase dois bilhões de pessoas vivem abaixo do limite da pobreza, sobrevivendo com menos de US$ 2 por dia.
As economias dos países industrializados gastam US$ 900 bilhões para proteger suas fronteiras, mas dedicam menos de US$ 60 bilhões aos países pobres, onde a fome é a maior arma de destruição em massa, matando 11 crianças por minuto e 24 mil pessoas por dia -ou seja, o equivalente a um tsunami por semana.
A idéia de uma civilização que deixa suas próprias crianças morrer à míngua é apavorante. Se não conseguirmos brecar o aumento da desigualdade, se os objetivos de desenvolvimento do milênio não forem alcançados, será a maior derrota humana do século. Para vencer a injustiça, é preciso também vencer a indiferença.
A reunião contra a fome e a pobreza da qual participaram uma centena de países e dezenas de chefes de Estado, na ONU, em setembro de 2003, faz parte desse empreendimento coletivo. A organização dos países pobres em blocos regionais é outro esforço para canalizar a energia do comércio mundial na luta contra a desigualdade.
Antes de mais nada, é essencial reformar a hierarquia das instituições multilaterais. Para que os países pobres tenham condições de fazer da luta pelo desenvolvimento uma prioridade, é preciso que a democracia seja reforçada no centro do poder. A reforma da ONU e, em especial, do Conselho de Segurança, faz parte desse programa.
Mas as fronteiras de desigualdade não vão se deslocar enquanto o poder político continuar bloqueado por um sistema financeiro que perpetua as relações atuais: 45% das decisões do Banco Mundial são tomadas pelos sete países mais ricos. E cinco economias centrais controlam 40% dos votos no Fundo Monetário Internacional (FMI), sendo que 23 países africanos, assolados pela fome, têm apenas 1%.
A solidariedade com a vida deve sempre triunfar sobre os mecanismos da morte. As dívidas precisam ser saldadas, mas o pagamento não pode significar a eutanásia do devedor. Aqueles que detêm os excedentes da riqueza financeira devem levar em conta o déficit social que aflige três quartos da humanidade.
Isso não pode ser feito aplicando-se unicamente alguma fórmula contábil. É preciso, em lugar disso, fazer surgir neste século a tão essencial e aguardada renovação da democracia: a transformação da justiça social na nova fronteira da soberania dentro da arena global.
A eficácia sem valores exclui os direitos humanos da linguagem da economia. A trágica ilusão dos anos 90, com o jogo exagerado da tecnologia e da livre movimentação do capital, reduziu o debate sobre o desenvolvimento à insignificância.
Para corrigir esse erro, precisamos, agora, afirmar a validade da utilização de recursos públicos para a reconstrução da sociedade e da solidariedade e para a promoção do desenvolvimento. Trata-se, em boa parte dos casos, de fazer renascer os fundamentos de uma vida comum, como o direito ao alimento, à infância e à velhice, que são as formas de ação positivas no mundo globalizado de hoje.
O combate internacional à fome e o programa Fome Zero, no Brasil, são frutos dessa convicção estratégica. O programa Bolsa Família já garante uma renda mínima a 60% das famílias pobres. É o maior programa de assistência da América Latina.
O programa alcança 6.571.830 famílias. Vinte milhões de pessoas se beneficiam dele e 15 milhões de crianças são escolarizadas, o que é condição básica para as famílias terem direito aos recursos. No final de 2006, as bolsas-família vão chegar a 11 milhões de famílias -os pobres e os muito pobres do Brasil.
A via necessária não é a que existe hoje, mas a que estamos construindo e que devemos ampliar e aprofundar. Vivemos uma época de possibilidades humanas inusitadas.
Nenhuma das desculpas apresentadas no passado para justificar o fracasso na realização de grandes esperanças ainda tem alguma justificativa tecnológica ou financeira. E, a cada vez que um obstáculo aparece, pode-se iniciar um diálogo para reposicionar a condição humana no curso da história.
A discussão sobre as áreas comuns possíveis entre o Fórum Social Mundial de Porto Alegre e o Fórum Econômico Mundial de Davos, que acontecem ao mesmo tempo, é uma tarefa incluída nessa abordagem. Não se trata de pedir às pessoas que deixem de ser o que são, mas de criar vínculos entre comunidades unidas por um destino humano indivisível.
Ninguém deveria temer a palavra exata ou o interlocutor correto. Mais do que nunca na história, um outro mundo é possível, e todas as formas de isolamento e de autarquia serão superadas em nossa época, na qual a preocupação com a justiça é tão forte que o poder da democracia pode realizá-la.


Tradução de Clara Allain


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