|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARTIGO
Entre Davos e Porto Alegre existem convergências possíveis
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Leia abaixo texto do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva publicado na revista do Fórum Econômico Mundial, que acontece em Davos, na Suíça.
A METÁFORA do século assumiu
proporções devastadoras no maremoto que devastou o sul da Ásia no final
de 2004. O violento tsunami nos fez lembrar que o isolamento histórico e geográfico é impossível e que todas as fronteiras
são comuns. A nova geopolítica da existência humana dá provas de uma capacidade sem precedentes de luta pelos grandes interesses coletivos e exigência de soluções que sejam coordenadas e solidárias.
Não se trata mais de, em oposição ao
inevitável extravasamento das fronteiras
pela globalização, lançar apelos pela auto-suficiência e o isolacionismo. Trata-se,
muito mais, de reforçar as fronteiras com
uma convergência de recursos e de direitos, ao mesmo tempo em que se reafirma
o componente humano da economia e do
progresso. A partir dessa nova perspectiva, devemos examinar outra área de devastação evidente nas estatísticas de nossa época: um tremor de terra silencioso
que repercute desde os abismos da desigualdade global e que recoloca o imenso
desafio de convencer os povos do mundo
a se engajarem em favor de um projeto de
cooperação em massa no século 21.
A abundância e a injustiça foram as
maiores características do século 20. Nos
últimos 40 anos, o PIB mundial dobrou e,
ao mesmo tempo, a desigualdade econômica entre o centro e a periferia do planeta triplicou. Os 25% mais ricos do mundo
consomem 80% dos recursos disponíveis.
Isso acontece enquanto quase dois bilhões de pessoas vivem abaixo do limite
da pobreza, sobrevivendo com menos de
US$ 2 por dia.
As economias dos países industrializados gastam US$ 900 bilhões para proteger
suas fronteiras, mas dedicam menos de
US$ 60 bilhões aos países pobres, onde a
fome é a maior arma de destruição em
massa, matando 11 crianças por minuto e
24 mil pessoas por dia -ou seja, o equivalente a um tsunami por semana.
A idéia de uma civilização que deixa
suas próprias crianças morrer à míngua é
apavorante. Se não conseguirmos brecar
o aumento da desigualdade, se os objetivos de desenvolvimento do milênio não
forem alcançados, será a maior derrota
humana do século. Para vencer a injustiça, é preciso também vencer a indiferença.
A reunião contra a fome e a pobreza da
qual participaram uma centena de países
e dezenas de chefes de Estado, na ONU,
em setembro de 2003, faz parte desse empreendimento coletivo. A organização
dos países pobres em blocos regionais é
outro esforço para canalizar a energia do
comércio mundial na luta contra a desigualdade.
Antes de mais nada, é essencial reformar a hierarquia das instituições multilaterais. Para que os países pobres tenham
condições de fazer da luta pelo desenvolvimento uma prioridade, é preciso que a
democracia seja reforçada no centro do
poder. A reforma da ONU e, em especial,
do Conselho de Segurança, faz parte desse programa.
Mas as fronteiras de desigualdade não
vão se deslocar enquanto o poder político
continuar bloqueado por um sistema financeiro que perpetua as relações atuais:
45% das decisões do Banco Mundial são
tomadas pelos sete países mais ricos. E
cinco economias centrais controlam 40%
dos votos no Fundo Monetário Internacional (FMI), sendo que 23 países africanos, assolados pela fome, têm apenas 1%.
A solidariedade com a vida deve sempre triunfar sobre os mecanismos da
morte. As dívidas precisam ser saldadas,
mas o pagamento não pode significar a
eutanásia do devedor. Aqueles que detêm
os excedentes da riqueza financeira devem levar em conta o déficit social que
aflige três quartos da humanidade.
Isso não pode ser feito aplicando-se
unicamente alguma fórmula contábil. É
preciso, em lugar disso, fazer surgir neste
século a tão essencial e aguardada renovação da democracia: a transformação da
justiça social na nova fronteira da soberania dentro da arena global.
A eficácia sem valores exclui os direitos
humanos da linguagem da economia. A
trágica ilusão dos anos 90, com o jogo
exagerado da tecnologia e da livre movimentação do capital, reduziu o debate sobre o desenvolvimento à insignificância.
Para corrigir esse erro, precisamos,
agora, afirmar a validade da utilização de
recursos públicos para a reconstrução da
sociedade e da solidariedade e para a promoção do desenvolvimento. Trata-se, em
boa parte dos casos, de fazer renascer os
fundamentos de uma vida comum, como
o direito ao alimento, à infância e à velhice, que são as formas de ação positivas no
mundo globalizado de hoje.
O combate internacional à fome e o
programa Fome Zero, no Brasil, são frutos dessa convicção estratégica. O programa Bolsa Família já garante uma renda
mínima a 60% das famílias pobres. É o
maior programa de assistência da América Latina.
O programa alcança 6.571.830 famílias.
Vinte milhões de pessoas se beneficiam
dele e 15 milhões de crianças são escolarizadas, o que é condição básica para as famílias terem direito aos recursos. No final
de 2006, as bolsas-família vão chegar a 11
milhões de famílias -os pobres e os muito pobres do Brasil.
A via necessária não é a que existe hoje,
mas a que estamos construindo e que devemos ampliar e aprofundar. Vivemos
uma época de possibilidades humanas
inusitadas.
Nenhuma das desculpas apresentadas
no passado para justificar o fracasso na
realização de grandes esperanças ainda
tem alguma justificativa tecnológica ou financeira. E, a cada vez que um obstáculo
aparece, pode-se iniciar um diálogo para
reposicionar a condição humana no curso da história.
A discussão sobre as áreas comuns possíveis entre o Fórum Social Mundial de
Porto Alegre e o Fórum Econômico Mundial de Davos, que acontecem ao mesmo
tempo, é uma tarefa incluída nessa abordagem. Não se trata de pedir às pessoas
que deixem de ser o que são, mas de criar
vínculos entre comunidades unidas por
um destino humano indivisível.
Ninguém deveria temer a palavra exata
ou o interlocutor correto. Mais do que
nunca na história, um outro mundo é
possível, e todas as formas de isolamento
e de autarquia serão superadas em nossa
época, na qual a preocupação com a justiça é tão forte que o poder da democracia
pode realizá-la.
Tradução de Clara Allain
Texto Anterior: Exército ostenta luxo no Haiti, diz ativista Próximo Texto: A vaia é válida?: "Não sei o que Lula fará lá", diz Grzybowski Índice
|