São Paulo, domingo, 27 de dezembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JANIO DE FREITAS
Espetáculo exclusivo

Distraídos por coisas tão corriqueiras como o FMI, negócios de privatização e outros negócios, flagrantes gravados e gordas contas no exterior, não prestamos atenção ao misto de espetáculo e lições de história que se desenrola diante de nós -mais uma contribuição social, aliás a maior, do governo.
Nem estavam acabadas as eleições, o que era o tema dominante entre os políticos do Congresso, com extensão volumosa no noticiário dos jornais? Quando constatado que o governador Mário Covas tinha doença grave e então por ser ainda dimensionada, qual foi a preocupação que dominou a quase totalidade dos comentaristas políticos, durante dias, e invadiu todos os recantos do PSDB? Esse assunto foi a sucessão de Fernando Henrique Cardoso em 2002.
Ninguém reparou, mas nisso havia um fato sem precedente histórico por aqui. As intermináveis conversas políticas e a quantidade incalculável de papel ocupado com especulações em torno de Covas, Serra, Antonio Carlos Magalhães, e outros menos escaláveis, aconteciam antes mesmo da posse de Fernando Henrique.
Seja lá o que isso signifique, não foi ou não é motivado por um acirramento da disputa pela Presidência. Sempre houve essa disputa, sem que jamais um presidente eleito estivesse atropelado por sua sucessão antes até de ser presidente de fato. E dentro de suas próprias hostes partidárias e jornalísticas. Seja lá o que isso signifique, não é pouco. Em relação ao presente, como se a nova Presidência fosse dada por finda antes de começar, mas sobretudo em relação aos quatro anos vindouros.
Outro ato do espetáculo. A natureza comercial das relações de Fernando Henrique com a maioria dos parlamentares tem custado caro, paradoxalmente, à parte que recebe. O conceito do Congresso foi para o beleléu. O baixíssimo nível intelectual e cívico é bem tolerado, porque é parte da decadência cultural que há 30 anos assola o país todo, com voracidade sempre maior. Mas a vileza, caracterizada no compra-e- vende com a Presidência da República, repugna e revolta.
À parte, porém, as fraquezas morais dos dois lados desse comércio, há uma de natureza bem diversa. E que constitui outro fato a marcar esse período, quando dele a história se ocupar (por um brazilianist, claro). É a fraqueza que leva à necessidade de comprar para obter o apoio, mesmo que dos componentes da chamada base parlamentar do governo.
Para não ir muito longe, lembremos a formação do ministério de Tancredo Neves. Houve composições, mas ninguém ouviu ou leu algum líder partidário fazendo alguma exigência. Nem foi constatada a existência de um balcão visitado dia e noite por pretendentes e representantes de grupos.
Quando Sarney montou seu ministério, em substituição ao herdado de Tancredo, ficou sob as pressões do confronto entre o PMDB de Ulysses e o futuro PFL. Teve que negociar muito, mas não se viu a perversão das composições políticas pelo comércio. Collor, por sua vez, não montou um ministério, mesmo. Montou uma idiotia com finalidades ministeriosas. Itamar Franco armou seu ministério com as composições tradicionais, sem amesquinhar-se ou aviltar a Presidência. Não cedeu nada que não desejasse consentir.
Com Fernando Henrique, as montagens dos ministérios têm sido espetáculos de falta de escrúpulos. Uns exigem, outros achacam, outros chantageiam - e um paga, cede, dá, entrega, deixa tomar. Tudo às escâncaras, em declarações públicas, em entra e sai de casa comercial. Os ministérios são montados como as aprovações são obtidas no Congresso.
O que leva a isso, no entanto, não é só fraqueza moral. A compra é o meio de obtenção quando falta, para isso, o meio próprio: a capacidade de liderança, o reconhecimento como comandante firme e competente, em resumo, a força política. São as qualidades que têm explicado Antonio Carlos Magalhães, Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Carlos Lacerda, Leonel Brizola, Miguel Arraes, por exemplo.
Já Fernando Henrique é exemplar em sentido oposto: consideradas aquelas características citadas e os métodos a que precisa recorrer, é o mais fraco de todos os presidentes. E o mais espantoso é que conta com um instrumento que nenhum outro teve fora do regime militar: a força da unanimidade dos meios de comunicação.
Há mais atrações no espetáculo governamental do que sua sedução real pelo FMI e pela globalização.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.