São Paulo, domingo, 27 de dezembro de 1998

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ELIO GASPARI

Boa notícia
Há tênues razões para se supor que as operadoras de planos de saúde deixarão de impor aumentos abusivos aos consumidores que chegam aos 60 anos. Por enquanto, a Blue Life continua querendo cobrar aumentos médios de quase 100% às suas vitimas. Algumas delas pagavam R$ 165 mensais e receberam contas de R$ 316 porque cometeram a imprudência de viver além dos 59 anos. Falta pouco para que as seguradoras possam anunciar uma louvável mudança de sua política.
Como vem acontecendo desde que o Congresso começou a discutir a regulamentação desse mercado paleolítico, as operadoras de saúde privada só descobrem que lhes é possível mudar de hábitos quando a discussão de suas pretensões se torna pública. Pena, pois o maior patrimônio de uma empresa desse tipo está na sua capacidade de conviver com a clientela numa relação de clareza e confiança mútuas.
Há maganos nesse mercado que gostariam de discutir tudo em gabinetes fechados, mas a sopa acabou. A eles, de presente, uma observação do grande juiz Hugo Black, da Corte Suprema dos Estados Unidos: "A luz do Sol é o melhor dos detergentes".


Governo Araribóia?
Alguém fez uma ursada com o professor Celso Lafer. Quando se oficializou sua escolha para o Ministério do Desenvolvimento, o Itamaraty distribuiu-lhe o currículo, um cartapácio de 48 páginas. A peça listava a sua presença em cinco conselhos de estatais do governo de São Paulo entre os anos de 1986 e 1987. Cada item vinha acompanhado de uma informação adicional: "Governo Montoro".
Ao final, o currículo informava que o professor Lafer foi ministro das Relações Exteriores de abril a outubro de 1992. E só.
É verdade que todos os colaboradores de Franco Montoro podem se orgulhar de ter participado de um dos melhores governos da história de São Paulo, mas não é certo dar a impressão de que entre abril e outubro de 1992 o Brasil foi governado pelo cacique Araribóia. Nesse período o presidente da República se chamava Fernando Collor de Mello e, com ele o professor Lafer foi, com fé, até o último despacho.


Na rua
O doutor Joel Rennó festejará o réveillon, mas dificilmente brincará o Carnaval como presidente da Petrobrás.
Dado o zelo com que perseguiu a diligência durante os seis anos em que esteve no cargo, sairá debaixo de aplausos.


Encrenca à vista
O ex-presidente Itamar Franco pretende transformar o governo de Minas Gerais numa trincheira contra a política econômica do governo. Como vai fazer isso, não se sabe.
O primeiro capítulo da obra é conhecido. Vai turbinar a CPI da Assembléia Legislativa que futucará a privatização das Centrais Elétricas de Minas Gerais, a Cemig.
Uma coisa é certa. Na cerimônia de sua nova posse, FFHH terá a falta de Itamar levantando-lhe o braço e saudando o povo. Há quatro anos, essa cena foi uma das mais civilizadas da história republicana.


A conta do sono vai ao Congresso

FFHH está sendo injusto com o Congresso ao lhe pedir que, em nome do ajuste fiscal e da salvação dos povos, acelere a votação da nova alíquota da CPMF. Está sendo também deselegante, porque sabe que a ekipekonômica já começou a cozinhar um novo programa de cortes, de R$ 1 bilhão, pretendendo apresentá-lo à patuléia como consequência da perda da arrecadação desse tributo.
Seria justo, e elegante, se reconhecesse que o seu governo deixou de fazer o serviço para o qual é pago. Se a Viúva perderá arrecadação, isso foi obra dele e da ekipekonômica, que não cuidaram de mandar ao Congresso o projeto de lei que lhes teria permitido preservar a continuidade da CPMF.
A história é um pouco complicada e exige alguma paciência.
Como a CPMF é uma contribuição provisória, tinha dia certo para morrer. Caducará no dia 23 de janeiro. Para que o governo pudesse cobrá-la a partir do dia 24, deveria ter mandado um projeto de emenda constitucional ao Congresso. Até as pedras sabem que, pela Constituição, a cobrança de uma contribuição social só pode começar 90 dias depois da promulgação da lei que a criou. Simples: 23 de janeiro menos 90 dias é igual a 24 de outubro. Donde, a emenda constitucional deveria ter sido aprovada até 24 de outubro. Admitindo-se que ela tramitasse em três meses, FFHH deveria ter mandado o projeto ao Congresso antes do dia 24 de julho. Isso só foi feito em novembro, depois da bancarrota.
Agora, pede-se pressa ao Parlamento, como se ele fosse casa da sogra ou loja de sanduíches. Tendo sido senador, o presidente sabe que o rito da tramitação legislativa não é consequência da preguiça, mas da sabedoria. Destina-se a permitir a reflexão e o debate. A pressa legislativa é uma das marcas da virose autoritária do Executivo brasileiro. Tanto é assim que os atos institucionais entravam em vigor logo depois de assinados.
A ekipekonômica não encaminhou a proposta de emenda constitucional porque prometia uma reforma tributária mais ampla. O doutor Pedro Parente, encarregado de prepará-la, já a anunciou três vezes, mas até agora só conseguiu produzir vagas idéias, ou, como disse a deputada Maria da Conceição Tavares, "uma palhaçada". Além disso, o ministro Pedro Malan temia que, se o assunto fosse mandado ao Congresso, o dinheiro da CPMF seria expressamente vinculado aos gastos com a saúde. Ele precisa do dinheiro para pagar juros aos gatos gordos.
Desde o dia 24 de julho, FFHH, Malan e a turma do ajuste sabiam que a partir de 24 de janeiro, com a CPMF caduca, o Tesouro perderia R$ 22 milhões por dia. Pedindo ao Congresso a pressa que lhe faltou, FFHH diz que espera dispor da CPMF em março. É difícil. Nesse caso, já terá perdido mais de R$ 1 bilhão. Se a cobrança tiver que esperar os 90 dias que a Constituição determina, a perda passará de R$ 3 bilhões. (Isso com a alíquota velha, de 0,2%. A mesma conta, com 0,38% leva a uma perda de arrecadação superior aos R$ 4 bilhões do total dos cortes do ajuste.)
O problema não teria existido se o Planalto tivesse mandado seu projeto em julho. Não precisava se comprometer com qualquer alíquota. Bastava abrir o debate parlamentar. Depois de outubro e da bancarrota, pediria uma percentagem maior, e o Congresso não a negaria.
Muito gogó e pouco trabalho os males do governo são. A economia nacional está arruinada porque a ekipekonômica é composta por um conciliábulo de apostadores abúlicos, autoritários e apocalípticos.
Nas palavras de FFHH:
-Eles todos usam terno escuro, entram aqui e dizem que se não se fizer isso ou aquilo, virá o apocalipse.
O apocalipse ainda não veio, mas se FFHH não se cuidar, a turma do terno preto vai produzi-lo.
Em 1997 produziram o Pacote 51 e puseram a culpa na Ásia. Em 98, no pacote do FMI, culparam a Rússia. Vão começar 1999 cortando ou tungando mais R$ 1 bilhão e, se ninguém reclamar, jogam sobre o Congresso, as escolas e os hospitais, a pressa da própria preguiça.


Uma bonita viagem pela vida do monarca
É muito bom o livro "As Barbas do Imperador", de Lilia Moritz Schwarcz. Baseia-se num levantamento inédito de imagens de d. Pedro 2º admiravelmente editado pelo craque Hélio de Almeida. Tem 611 páginas e cerca de 700 ilustrações. É um bonito passeio pelo Brasil tão pouco conhecido da segunda metade do século 19.
Lilia Schwarcz associou sua narrativa à construção da imagem do imperador e das suas transmutações, de rei-menino (assumiu o trono aos 14 anos) em monarca das ciências. Por poliglota, cosmopolita e bibliófilo, fez-se passar por sábio. O capítulo em que mostra como d. Pedro moldou a elite por meio do mecenato do Instituto Histórico e Geográfico é um passeio pela sua alma e pela maneira como se inventou uma nação chamada Brasil. Seu retrato da política de concessão de títulos nobiliárquicos é uma viagem ao poder e às vaidades do passado, quando o sonho do andar de cima era um título de barão. (Ele corresponde hoje ao de ex-ministro.)
Só um fino olhar feminino seria capaz de retratar, em apenas 32 linhas, a relação do imperador com a condessa de Barral. A professora liquida a fatura transcrevendo um trecho de carta no qual eles rememoram um encontro:
D. Pedro: Lembra-se do hotel Orleans?
Barral: Como não?
D. Pedro: Lembra-se do nome do nosso porteiro?
Barral: Se me lembro do sr. Rozano. Estou ouvindo o sino.
"A Barral parece ter ficado com boa lembrança", conclui Lilia.
Como escasseiam biografias desse homem que governou o Brasil por 49 anos, ler sua história permite bem mais do que rever o século 19. Ajuda a antever o 21. (FFHH só baterá a marca de Pedro quando completar 112 anos, na 28ª reeleição.)
Deve-se à existência de d. Pedro 2º a magistral obra de Sérgio Buarque de Holanda sobre o ocaso da Coroa ("Do Império à República") e nunca é demais republicar, como se fosse reza, um trecho do perfil que traçou do monarca:
"Gostaria que o Brasil tivesse em boa ordem as finanças e a moeda bem sólida, ainda que esse desejo pudesse perturbar a promoção do progresso material, da educação popular, da imigração, que também desejava. Ora, a meticulosa prudência deixa de ser virtude no momento em que passa a ser estorvo: lastro demais e pouca vela."
Sérgio Buarque de Holanda conviveu com FFHH ao tempo em que ele era um professor republicano.


Cuidado com as pedras desgovernadas
Deve-se ao jornalista Leonencio Nossa Junior um bom tema para a agenda do novo ministro do Trabalho, Francisco Dornelles. Trata-se de dar uma olhada nas condições de trabalho nas pedreiras de mármore do Espírito Santo. Lá existe um mundo esquisito. Os donos das jazidas dizem que está tudo bem, mas nas cidades vizinhas abundam os casos de jovens morrendo de broncopneumonia. Já se registrou caso de um garoto de 16 anos explodido ao acender o pavio de uma carga de dinamite.
Os maganos das pedreiras passaram da conta. Conseguiram criar um mundo fantástico. Nele um trabalhador de Itaoca (Moacir Pereira Passos, de 44 anos) foi esmagado por uma pedra e o INSS produziu a seguinte descrição do acidente:
"Ao retornar-se do seu horário de almoço, o mesmo não enxergou-se uma pedra vindo em sua direção desgovernada e bateu em sua cabeça".
Isso aconteceu no dia 22 de junho passado e, ao contrário do que manda a lei, não se fez registro policial do acidente.
Uma beleza de dissimulação. O operário estava voltando do almoço (portanto não estava trabalhando), não viu a pedra (portanto é um distraído). Finalmente, inocenta-se a pedra e esclarece-se que ela o atingiu porque estava desgovernada. Como se sabe, há as pedras governadas, aquelas que sabem desviar da cabeça de trabalhadores distraídos que insistem em almoçar.


Cuidado com eles
Uma das primeira encrencas de 1999 será a questão da inadimplência dos estudantes da escolas privadas.
À primeira vista, vai-se para um beco sem saída, pois uma das boas medidas tomadas pelo governo FFHH foi a de impedir que um jovem fique sem estudar porque seu pai ficou sem dinheiro para pagar as mensalidades de seu colégio. Essa proteção, destinada a amparar quem precisa, transformou-se em atalho para caloteiros profissionais.
Alguns donos de escolas querem revogar a medida provisória, o que reduziria a questão a um conflito entre cobradores e vigaristas. Como tudo o que prejudica a choldra anda depressa e tudo o que a beneficia anda devagar, o risco da retirada da rede protetora pode ser grande.
O problema é falso. Basta trabalhar. É possível montar um sistema pelo qual as escolas privadas (quase todas supostamente filantrópicas) possam cruzar a concessão de bolsas que lhes dá isenções tributárias com a lista de alunos cujas famílias estão em dificuldade.
Esse mecanismo beneficiaria a classe média levada à bancarrota e tiraria aos donos de colégios o poder de distribuir bolsas para os eleitores de seus padrinhos políticos.
Quando as escolas privadas puderem mostrar que têm uma política respeitável para a concessão de bolsas, será possível argumentar que a revogação da medida provisória afetará só os vigaristas. Até lá, o governo pode dar aos donos de escolas que reclamam dos inadimplentes a mesma lógica que usa para a política de juros que engordam o andar de cima: é uma situação que produz injustiças, mas não há o que fazer.


EREMILDO, O IDIOTA

Eremildo é um idiota. Ele garante que a maior prova de que FFHH está preocupado com o problema do emprego está na atenção que deu aos desempregados ao compor seu novo ministério.
Ao desempregado Elcio Alvares, que perdeu a eleição no Espírito Santo, deu o Ministério da Defesa. (E ele nem precisa do salário, pois é procurador aposentado.)
Ao desempregado José Botafogo Gonçalves, que perdeu o Ministério da Indústria e Comércio, deu a Câmara de Comércio Exterior.
Ao desempregado Edward Amadeo, que perdeu o Ministério do Trabalho, deu o Secretaria de Planejamento. (Ao tomar posse, o doutor Amadeo disse que pretendia ocupar-se "sem tréguas, para aumentar a empregabilidade do trabalhador brasileiro". Nos oito meses em que esteve no ministério o numero de desempregados aumentou em mais de um milhão de pessoas, mas sua empregabilidade ficou garantida.)
Ao desempregado Paulo Paiva, que perdeu o Planejamento, ele deu o Ministério do Orçamento e Gestão. (Em janeiro o doutor Paiva dizia assim: "Não existe milagre de se tomar uma medida e, no curto prazo, reduzir o desemprego. Senão, estaríamos no paraíso". Pelo que se vê o paraíso existe e ele chegou lá.)
Amadeo e Paiva conseguiram essas colocações graças aos bons ofícios da Agência Pedro Malan de Empregos e Serviços Gerais.
O idiota fez as contas e descobriu que a reforma ministerial desempregou três pessoas (Raimundo Brito, Gustavo Krause e o companheiro José Israel Vargas) e criou sete novos postos de trabalho. Se a Ford trabalhasse com os mesmos critérios, depois de demitir 2.800 trabalhadores no Natal, contrataria 6.500 no Ano Novo.
Só agora Eremildo entendeu o que o governo quer dizer quando repete que o desemprego é coisa dos grandes centros urbanos. Ele não chega a Brasília.



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