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JANIO DE FREITAS
À margem da guerra
Quase despercebido, sob o
clamor mais urgente com a
tragédia no Iraque, em paralelo
à guerra está se formando um cenário complicado e ameaçador,
no desdobramento da decisão
anglo-americana de agir à revelia das Nações Unidas.
O vício generalizado da visão
de curto prazo, que toma os fatos
isoladamente, sem perceber que
são partes de um encadeamento,
dificulta a percepção da gravidade implícita em confrontos como
o havido, nas últimas 48 horas,
entre o governo dos Estados Unidos e a ONU. Prenúncio de um
cenário internacional cujos ônus
só podem recair sobre os quatro
quintos menos poderosos do
mundo. É dispensável dizer em
que parte, nesta divisão, fica o
Brasil.
O discurso do secretário da
ONU, Kofi Annan, na reunião
do Conselho de Segurança anteontem, foi tão sereno quanto
firme, tão claro quanto objetivo.
Terminada a guerra -note-se
que Annan falava em nome da
ONU- o Iraque deverá ter plena soberania, a posse de todas as
suas riquezas (leia-se a sua fabulosa e ambicionada reserva de
petróleo) e a plena decisão, a cargo só do seu povo, sobre a fisionomia política do país.
A resposta, em nome dos Estados Unidos, veio do secretário de
Estado, Collin Powell. Depois do
esforço que estão fazendo, os Estados Unidos é que vão tomar as
decisões todas no e sobre o Iraque, e não o Conselho de Segurança ou a ONU.
Apesar da crescente perda de
força, decorrente do poder de veto, usufruído por cinco países, e
da desobediência impune a numerosas resoluções do Conselho
de Segurança (impunidade também assegurada por vetos), a
ONU proporcionou um fórum
fundamental para deter a Guerra Fria nos seus próprios limites.
E, secundariamente, concedeu a
países do segundo, terceiro e outros mundos uma cobertura de
normas entre nações, cujos furos
não anularam o montante de
efeitos proveitosos.
A palavra Unidas se tornou
um apêndice degenerado na
ONU desde o início da Guerra
Fria. Mas o princípio da Organização é admirável, e restaurá-lo,
com as correções de regulamento
que o tempo mostrou necessárias, seria uma prova, enfim, de
que a humanidade se civiliza.
Tal projeto inexiste por parte dos
maiores beneficiários potenciais.
Pode-se intuir, no entanto, que o
oposto existe e está em curso.
Ao marginalizar o Conselho de
Segurança e a próprio ONU, o
governo Bush e seus extremistas
certamente estabeleceram, se
não o fizeram antes, o seu projeto para o destino da ONU -esse
obstáculo de cujo assentimento
"os Estados Unidos não dependem para fazer o que decidam",
nas palavras do próprio presidente da "maior democracia do
mundo".
Já se dispõe de elementos suficientes para compreender que a
ONU concebida pelo poder americano, supondo-se sua sobrevivência, não seria a ONU conveniente à construção de um mundo menos doentio e mais aberto
à justiça relativa entre as nações
poderosas e vastidão dos que travam a luta vã para emergir. A
perspectiva que se esboça é, porém, a do esvaziamento final ou
a de construção de uma ONU como adereço do império.
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