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São Paulo, sexta-feira, 28 de março de 2003

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JANIO DE FREITAS

À margem da guerra

Quase despercebido, sob o clamor mais urgente com a tragédia no Iraque, em paralelo à guerra está se formando um cenário complicado e ameaçador, no desdobramento da decisão anglo-americana de agir à revelia das Nações Unidas.
O vício generalizado da visão de curto prazo, que toma os fatos isoladamente, sem perceber que são partes de um encadeamento, dificulta a percepção da gravidade implícita em confrontos como o havido, nas últimas 48 horas, entre o governo dos Estados Unidos e a ONU. Prenúncio de um cenário internacional cujos ônus só podem recair sobre os quatro quintos menos poderosos do mundo. É dispensável dizer em que parte, nesta divisão, fica o Brasil.
O discurso do secretário da ONU, Kofi Annan, na reunião do Conselho de Segurança anteontem, foi tão sereno quanto firme, tão claro quanto objetivo. Terminada a guerra -note-se que Annan falava em nome da ONU- o Iraque deverá ter plena soberania, a posse de todas as suas riquezas (leia-se a sua fabulosa e ambicionada reserva de petróleo) e a plena decisão, a cargo só do seu povo, sobre a fisionomia política do país.
A resposta, em nome dos Estados Unidos, veio do secretário de Estado, Collin Powell. Depois do esforço que estão fazendo, os Estados Unidos é que vão tomar as decisões todas no e sobre o Iraque, e não o Conselho de Segurança ou a ONU.
Apesar da crescente perda de força, decorrente do poder de veto, usufruído por cinco países, e da desobediência impune a numerosas resoluções do Conselho de Segurança (impunidade também assegurada por vetos), a ONU proporcionou um fórum fundamental para deter a Guerra Fria nos seus próprios limites. E, secundariamente, concedeu a países do segundo, terceiro e outros mundos uma cobertura de normas entre nações, cujos furos não anularam o montante de efeitos proveitosos.
A palavra Unidas se tornou um apêndice degenerado na ONU desde o início da Guerra Fria. Mas o princípio da Organização é admirável, e restaurá-lo, com as correções de regulamento que o tempo mostrou necessárias, seria uma prova, enfim, de que a humanidade se civiliza. Tal projeto inexiste por parte dos maiores beneficiários potenciais. Pode-se intuir, no entanto, que o oposto existe e está em curso.
Ao marginalizar o Conselho de Segurança e a próprio ONU, o governo Bush e seus extremistas certamente estabeleceram, se não o fizeram antes, o seu projeto para o destino da ONU -esse obstáculo de cujo assentimento "os Estados Unidos não dependem para fazer o que decidam", nas palavras do próprio presidente da "maior democracia do mundo".
Já se dispõe de elementos suficientes para compreender que a ONU concebida pelo poder americano, supondo-se sua sobrevivência, não seria a ONU conveniente à construção de um mundo menos doentio e mais aberto à justiça relativa entre as nações poderosas e vastidão dos que travam a luta vã para emergir. A perspectiva que se esboça é, porém, a do esvaziamento final ou a de construção de uma ONU como adereço do império.


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