São Paulo, domingo, 28 de março de 2004

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ELIO GASPARI

Uma cátedra francesa: tortura

Deve-se ao olhar atento de Amir Labaki, organizador do 9º Festival Internacional de Documentários, uma das boas descobertas do 40º aniversário da implantação da ditadura militar. Ele achou dois minutos de ouro no meio de um memorável filme da jornalista Marie-Monique Morin ("Esquadrões da Morte - A Escola Francesa").
Nele o general chileno Manuel Contreras, chefe da máquina repressiva da Dina e sumo-sacerdote da Operação Condor, informa que mandou regularmente, a cada dois meses, oficiais do seu serviço para serem treinados no Brasil. Eles passavam pela Escola Nacional de Informações, em Brasília, e completavam seus estágios num centro de treinamento em Manaus.
Conhecia-se o texto de uma carta de Contreras a Pinochet, de 16 de setembro de 1975, pedindo um reforço de verba de US$ 600 mil para, entre outras coisas, custear a ida de oficiais chilenos para os "cursos de preparação de grupos antiguerrilheiros no Centro de Treinamento da cidade de Manaus, Brasil". Ninguém podia garantir que esses oficiais tivessem realmente embarcado, ou mesmo que o curso existisse.
Marie-Monique Morin, que concebeu e dirigiu o documentário, dá ponto e nó nessa história. No seu documentário, Contreras conta ao vivo e a cores que mandava os oficiais ao Brasil e chega a queixar-se do intercâmbio: "Não era muito agradável para os que vinham do Chile ou da Argentina, porque o clima de Manaus é muito ruim".
Noves fora o fato de ele ter revelado que os argentinos entraram no negócio, o documentário coloca outro general na fotografia: Paul Aussaresses, francês, veterano da batalha de Dien Bien Phu, no Vietnã, autoproclamado maestro das torturas contra argelinos nos anos 60 e adido militar no Brasil entre 1973 e 1975.
Aos 85 anos, Aussaresses assusta. Aparece no documentário com um tapa-olho cobrindo um olho esquerdo perdido depois de oito operações de catarata e informa que comandou serviços de tortura, assassinato e desaparecimento de presos na Argélia. Posteriormente, lecionou em Fort Bragg, nos Estados Unidos. Segundo um de seus alunos americanos, "ele explicou a tortura". O general conta que, quando viveu no Brasil, encontrou diversos generais que tinham sido seus discípulos nos Estados Unidos.
A passagem de Aussaresses por Pindorama era conhecida, pois em 2001 ele lançou um livro contando sua passagem pela Argélia e fez uma rápida referência ao seu período brasileiro.
Graças ao general Manuel Contreras, aprende-se que Aussaresses foi algo mais que um simples adido. Com a palavra o hierarca chileno: "Eu não o conheci pessoalmente, mas ele treinou chilenos no Brasil. (...) Ele trabalhava habitualmente na sede do Serviço de Inteligência, mas viajava a Manaus para o treinamento".
Um general francês contando que ensinou técnicas de interrogatório (leia-se tortura) em território brasileiro para uma multinacional que juntava também argentinos e chilenos é uma relevante revelação. Sobretudo para quem gosta de assoviar a Marselhesa e culpar os Estados Unidos por tudo o que acontece de ruim na América Latina. A transação de Manaus ocorreu antes da fundação da Operação Condor, em outubro de 1975.
O filme de Marie-Monique Robin mostra como a teoria da "guerra revolucionária" foi inventada na França e o uso da tortura como instrumento de investigação de tropas regulares foi inaugurado na Argélia pelos pára-quedistas do general Jacques Massu, que morreu há cerca dois anos, arrependido. Os americanos importaram essa tecnologia francesa, usaram-na no Vietnã e disseminam-na na América Latina. Aussaresses teve nos generais argentinos seus melhores discípulos. Um deles, Albano Harguindeguy, foi condecorado em 1980 pelo general João Figueiredo com a Ordem do Cruzeiro do Sul. Na ocasião já tinha consolidado sua fama de assassino. Está no filme.
*Serviço: "Esquadrões da Morte - A Escola Francesa", será exibido terça-feira, às 21h30, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio. Em São Paulo, na quinta-feira, dia 1º, no Cine Sesc, e no domingo, dia 4, no Museu da Imagem e do Som.
Quem entende desse tipo de programa sugere que se chegue uma hora antes ao CCBB e ao MIS. Para o Sesc, o melhor é hora e meia.

A rua roncou para a CUT

Nos últimos 12 meses, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) amargou três derrotas no mundo sindical do funcionalismo público. No ano passado, chapa apoiada pela CUT foi derrotada na eleição do Unafisco.
Apesar do bom desempenho da diretoria, a praga governista contaminou a campanha e a oposição venceu, por um fio de cabelo.
Meses depois, o PT perdeu o Sindicato dos Auxiliares de Ensino de Brasília, o segundo da cidade em tamanho, com 20 mil associados. A militância petista comandava o sindicato havia quase 20 anos.
Agora terminou a contagem dos votos do Sindilegis, dos funcionários do Legislativo e do Tribunal de Contas. A CUT disputou contra o sindicalista Ezequiel Nascimento, que buscava a reeleição. Tomou capote. Ezequiel reelegeu-se com 70% dos votos.

Lula é insuperável no desemprego

Eremildo é um idiota, acredita em tudo o que o governo faz. Ele esteve em Genebra, acompanhando o ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini. O doutor foi à Suíça cabalar votos para sua candidatura à presidência da Conferência Mundial do Trabalho, que se realiza em junho próximo. Concorrem à cadeira de Águia dos Alpes os ministros do Equador e da República Dominicana. O embaixador brasileiro no pedaço ofereceu um coquetel em homenagem a Berzoini (e Eremildo). O Bolsa-Ministro pagou tudo.
Por idiota, Eremildo acha que nenhum brasileiro pode dispensar uma ocupação provisória, sobretudo num momento em que a taxa de desempregados nas seis maiores regiões metropolitanas, computada pelo IBGE, chegou a 12%. Segundo o Dieese, que pesquisa o mercado de trabalho na Grande São Paulo, as pessoas sem ocupação, somadas às que não conseguiram serviço decente durante o mês de fevereiro, somam 1,926 milhão de almas (contra 1,868 milhão em janeiro). Foi o pior fevereiro desde 1985, quando começou a pesquisa.
Eremildo fez as contas e está ansioso para pedir ao inigualável Lula que chame Duda Mendonça e o comissário Luiz Gushiken ao Torto para planejarem as festividades comemorativas da marca de 2 milhões de desempregados na Grande São Paulo. Pela conta do idiota, se a carruagem do PT Federal continuar como vai, chega-se ao desempregado número 2 milhões nos próximos 20 dias. O insuperável Lula poderia abrir a festa no dia 1º de maio, lembrando que prometeu criar 10 milhões de empregos em quatro anos.
Para que se tenha uma idéia do que significam 2 milhões de pessoas desempregadas numa só cidade, esse número equivale a algo como o dobro da população da São Paulo da época retratada nesta semana na minissérie "Um só Coração". Ou ainda, a um pouco menos que toda (repetindo, toda) a população da cidade em 1950 (2,2 milhões).

Leis de Newton

Pela lei da gravidade de Isaac Newton, Lula e o PSDB vão se aproximar.
Pela lei da contabilidade do ex-governador mineiro Newton Cardoso, Lula e o PMDB se aproximarão cada vez mais.
São movimentos contraditórios, típicos do tumulto mental dos sábios do Planalto.

Vale?

A quem interessar possa: Lula quer que o comissário José Dirceu fique calado.

Delúbio neles

Segundo uma agenda velha achada no Planalto, o comissário José Dirceu deixou uma fila de 54 parlamentares esperando por uma audiência.
Pena. Se os deputados e senadores pedissem ao tesoureiro petista Delúbio Soares para cuidar do assunto, teriam sido prontamente atendidos.
Como diz o companheiro: "Com burocrata de ministério? É só ligar e marcar para quatro, cinco dias depois".

Honra ao mérito

O presidente argentino Néstor Kirchner transformou em museu o prédio da Escola de Mecânica da Armada, onde funcionou a central de torturas da ditadura militar.
O governador tucano Geraldo Alckmin rebarbou uma proposta de tombamento do prédio do DOI-Codi, em São Paulo.

Tiro em "Tiros"

A cadeia Blockbuster de locação de vídeos meteu-se numa confusão. Um brasileiro teimoso percebeu que o documentário "Tiros em Columbine" (Oscar de 2003) não aparecia nas prateleiras das lojas que freqüentava. Também não achou o filme no catálogo das lojas.
Como além de teimoso ele gosta de encrencas, telefonou para 16 lojas em oito cidades. Nenhuma tem o filme, cruel exposição da violência na sociedade americana e dos efeitos da venda indiscriminada de armas. Sem mais o que fazer, escreveu uma carta contando sua história ao diretor do filme, Michael Moore, renomado encrenqueiro internacional.
A Blockbuster nega que a ausência do filme do seu catálogo tenha significado ou intenção política. Prova o que diz mostrando que aluga outros filmes, tão críticos da vida americana quanto o de Moore. Segundo a empresa, "Tiros em Columbine" não está disponível para os clientes da Blockbuster brasileira porque ocorreram dificuldades na negociação comercial com o distribuidor do filme.
Conclusão: se a patuléia brasileira quiser alugar "Tiros em Columbine" na Blockbuster, precisa ir a Nova York.

ENTREVISTA

Waldir Quadros

(54 anos, professor de economia social e do trabalho da Universidade de Campinas.)

- A principal produção de Lula e do PT no governo foi desemprego. Lula merece que se faça a justiça de reconhecer-lhe uma sincera vontade de que as coisas não tivessem acontecido assim. Como o senhor acha que ele sai dessa?
- Não sai. Pelo caminho político que ele preferiu, não tem saída. Lula está preso numa armadilha de banqueiros. Sem crescimento econômico, você não tem como equacionar um desemprego desse tamanho. Se fosse coisa de 4% ou 5%, seriam possíveis medidas paliativas, mas num processo que já dura dez anos e que chegou a um índice de 12% no IBGE, a ruína social pegou todas as classes. Lula capitalizou o descontentamento provocado por essa situação. Um ano depois, temos uma frustração que se desdobra em raiva. A classe média brasileira deslizou para a pobreza.
- O que vem a ser isso?
Veja esta tabela, na qual dividi em cinco grupos os brasileiros que tinham renda em 1981. Comparando a situação com a de 2002, a classe média pauperizou-se e o conjunto ficou mais feio.
As classes A, B e C deslizaram. Quem cresceu foram as classes D e E. Há categorias profissionais que, por definição, colocam as pessoas na classe média. Comerciário ou escriturário, por exemplo. A renda dessas pessoas contraiu-se. Muitas delas passaram do grupo B para o C ou do C para o D. Agora tomemos outro gráfico, com os mesmos números para a Grande São Paulo. Lidando com a renda familiar e não mais com as rendas individuais. Em 2002 eram 18,5 milhões de pessoas.

No grupo E havia 1,1 milhão de pessoas em 1981. Em 2002, eram 3,6 milhões. Num cálculo grosseiro, pode-se supor que mais de 2 milhões de pessoas deslizaram do grupo C para o D e do D para o E. Nesse período a população da Grande São Paulo cresceu de 13,4 milhões para 18,4 milhões. Um aumento de 5 milhões de brasileiros. Os grupos D e E, sozinhos, ficaram com 4,2 milhões de pessoas desse grupo de chegantes. O desemprego de 2003 e 2004 não está nessas tabelas e os números só devem ter piorado. Um país com uma crise social dessas por mais de dez anos está namorando o perigo, como diria o José Dirceu.
- Como o senhor sairia dessa? Com quem?
- Deus me livre estar numa situação assim. Vou lhe dar uma resposta que nunca pensei que fosse capaz de dar. Se alguém me dissesse que um dia eu ia dizer isso, eu me consideraria insultado. Parto de duas premissas. Uma é a de que a alternativa popular de esquerda, na qual tanta gente votou, dificilmente vai se reencontrar. Eu iria para uma alternativa onde houvesse conservadorismo e crescimento. Com quem? Alguma coisa na linha do Delfim Netto. Nem precisa ser ele.


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