São Paulo, domingo, 28 de março de 2004

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1964 - 40 ANOS DO GOLPE - 2004

Jornalista conta por que passou o 31 de março de 1964 dentro de um automóvel

O movimento militar foi apenas um DKW azul

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

Para mim, a noite de 31 de março para 1º de abril de 1964 é muito mais um DKW azul do que um tanque de guerra.
Explico: o DKW azul era de meu pai, que me emprestara para trabalhar esse carrinho alemão, caracterizado pelo câmbio na direção em vez de no chão.
Eu era o protótipo do "foca", o jargão profissional para iniciante no jornalismo. Estava ainda na faculdade (a Cásper Líbero, a única que à época ensinava jornalismo), tinha uns seis ou sete meses de profissão, mas já trabalhava na sucursal de São Paulo do matutino carioca "Correio da Manhã".
O jornal era importante no Rio. Nele trabalharam ou ainda trabalhavam ícones do jornalismo como Carlos Heitor Cony e Janio de Freitas, para citar apenas os dois que são agora desta Folha.
Mas sua sucursal em São Paulo era anêmica: um chefe, três ou quatro repórteres e alguns "free lancers", que acumulavam seu trabalho para veículos de São Paulo com a colaboração com o "Correio" (os jornalistas ganhavam mal e ainda não nos havíamos aburguesado tanto).
Por isso, fazíamos de tudo na sucursal: rádio-escuta (a televisão já existia, mas, como fonte de informação, era zero), "recortagem" (recortar os jornais locais, reescrevê-los e mandar a notícia para o Rio). Bom, fazíamos até reportagem.
Foi justamente esta última função que me levou ao DKW azul. O movimento militar começara em Minas Gerais e meu chefe, um notável jornalista e figura humana chamado Paulo Geraldo Costa Ferraz, que viria depois a se tornar meu sogro, me escalou para circular entre o palácio do governo e o comando do então 2º Exército (hoje Comando Militar do Sudeste).
Os dois prédios ficavam no centro velho de São Paulo. O governador Adhemar de Barros despachava no Palácio dos Campos Elíseos, em plena "boca do lixo", na qual, aliás, também ficava a sucursal do "Correio da Manhã", na rua dos Gusmões.
O 2º Exército era na rua Conselheiro Crispiniano, não muito longe, mas bem menos "boca".
Por que o DKW azul me preocupava mais que os tanques de guerra?
Simples: a gasolina estava acabando, os postos ou estavam já fechados ou eu não tinha tempo para procurá-los, empenhado que estava em procurar os tanques de guerra. Se havia um movimento militar, tinha que haver tanques de guerra, certo?
A bem da verdade, era uma das poucas coisas que eu imaginava saber sobre golpes militares. Havia, é verdade, acompanhado parte da conspiração prévia, pelo menos a parte que se desenrolava em São Paulo. Mas conspiração é uma coisa, golpe é outra.
Fora isso, não tinha a mais remota noção do que poderia acontecer ao e com o país, se o movimento militar de fato ganhasse. Ou mesmo se perdesse. Era verde demais para isso, além de estar preocupado com a gasolina do DKW azul e com o general Amaury Kruel, o comandante do 2º Exército.
Todo o mundo dizia que, se ele aderisse, o golpe vingaria. Se não, poderia ser o diabo.
O governador Adhemar de Barros estava embarcado no golpe, para azar dele próprio (foi cassado depois). Portanto, cobrir o Palácio dos Campos Elíseos era um objetivo secundário, embora houvesse uma vaga suposição, nunca levada muito a sério, de que Kruel poderia atacá-lo, se ficasse leal ao presidente João Goulart, em vez de participar do golpe em andamento.
Além disso, o palácio estava bem coberto por um grupo de setoristas tão competentes como absurdamente irreverentes, entre os quais havia um "free lancer" do "Correio".
Passei a noite toda andando (com o DKW azul, claro) dos Campos Elíseos para a Conselheiro Crispiniano, sem ter a mais pálida noção do que estava ocorrendo no resto do país. Não havia "Globo News", "Band News", a rigor não havia "news" alguma na televisão.
O rádio era a fonte essencial e privilegiada de informação instantânea, mas meu pai não instalara rádio no DKW azul. Como é possível cobrir uma revolução sem TV, sem rádio no carro, sem internet, sem porcaria nenhuma?
A noite terminou sem que os tanques se movessem e sem que o general Kruel se definisse, pelo menos para mim, maldito "foca".
Quando o sol começou a nascer, com o tanque do DKW finalmente cheio, voltei para a sucursal. Fiquei então sabendo que o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola (sim, Leonel Brizola, o próprio, o mesmo de hoje), havia convocado à resistência, que se esperava que o presidente João Goulart desembarcasse em Porto Alegre para pôr-se à frente dela, que o general que comandava o então 3º Exército estava com eles (o nome se perdeu nas brumas da memória).
Enfim, a chance de ver finalmente os tanques de guerra em ação, de ser testemunha ocular da história, não um motorista atarantado indo e voltando do palácio do governo com fragmentos de informação que nem mereceriam (como não mereceram) nem mesmo um pé de página no mais merreca dos livros de história.
Chance truncada, no entanto, pelas ordens do chefe. "Vai dormir, menino", ordenou. Como dormir? Pedi para ir para Porto Alegre. Iria até com o DKW azul, se meu pai deixasse, porque, pelo lenga-lenga que fora a madrugada nos centros nevrálgicos de São Paulo, imaginei que conseguiria chegar à capital gaúcha, mesmo de carro, em tempo de ver os tanques de um lado e do outro em ação finalmente.
O chefe foi intransigente. Não, não era para proteger o futuro genro, porque nem namorava ainda a filha dele, hoje minha mulher.
Fazer o que? Rebelar-me também e ir de qualquer jeito para o Rio Grande? Impossível. O salário não dava para esses luxos, nem que meu pai emprestasse o DKW azul. Ficar no jornal, esperando? Foi a primeira tentação, mas ocorreu-me a hipótese de que, se eu fosse para casa, dormisse umas duas ou três horas e voltasse à redação, talvez conseguisse convencer o chefe a me mandar para Porto Alegre.
Dormi, sou obrigado a confessar, um pouco mais do que duas ou três horas, o suficiente para que a resistência virasse fumaça, o presidente se asilasse no Uruguai, o Congresso, marotamente, declarasse vaga a Presidência, ainda antes da fuga de Goulart, e os tanques completassem o golpe ou a "Revolução Redentora" (o nome dependia do lado que você estivesse, contra ou a favor dos tanques).
E meu pai foi placidamente trabalhar com o DKW azul.


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