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1964 - 40 ANOS DO GOLPE - 2004
Jornalista conta por que passou o 31 de março de 1964 dentro de um automóvel
O movimento militar foi apenas um DKW azul
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
Para mim, a noite de 31 de março para 1º de abril de 1964 é muito
mais um DKW azul do que um
tanque de guerra.
Explico: o DKW azul era de meu
pai, que me emprestara para trabalhar esse carrinho alemão, caracterizado pelo câmbio na direção em vez de no chão.
Eu era o protótipo do "foca", o
jargão profissional para iniciante
no jornalismo. Estava ainda na faculdade (a Cásper Líbero, a única
que à época ensinava jornalismo),
tinha uns seis ou sete meses de
profissão, mas já trabalhava na
sucursal de São Paulo do matutino carioca "Correio da Manhã".
O jornal era importante no Rio.
Nele trabalharam ou ainda trabalhavam ícones do jornalismo como Carlos Heitor Cony e Janio de
Freitas, para citar apenas os dois
que são agora desta Folha.
Mas sua sucursal em São Paulo
era anêmica: um chefe, três ou
quatro repórteres e alguns "free
lancers", que acumulavam seu
trabalho para veículos de São
Paulo com a colaboração com o
"Correio" (os jornalistas ganhavam mal e ainda não nos havíamos aburguesado tanto).
Por isso, fazíamos de tudo na
sucursal: rádio-escuta (a televisão
já existia, mas, como fonte de informação, era zero), "recortagem" (recortar os jornais locais,
reescrevê-los e mandar a notícia
para o Rio). Bom, fazíamos até reportagem.
Foi justamente esta última função que me levou ao DKW azul. O
movimento militar começara em
Minas Gerais e meu chefe, um notável jornalista e figura humana
chamado Paulo Geraldo Costa
Ferraz, que viria depois a se tornar meu sogro, me escalou para
circular entre o palácio do governo e o comando do então 2º Exército (hoje Comando Militar do
Sudeste).
Os dois prédios ficavam no centro velho de São Paulo. O governador Adhemar de Barros despachava no Palácio dos Campos Elíseos, em plena "boca do lixo", na
qual, aliás, também ficava a sucursal do "Correio da Manhã", na
rua dos Gusmões.
O 2º Exército era na rua Conselheiro Crispiniano, não muito
longe, mas bem menos "boca".
Por que o DKW azul me preocupava mais que os tanques de
guerra?
Simples: a gasolina estava acabando, os postos ou estavam já fechados ou eu não tinha tempo para procurá-los, empenhado que
estava em procurar os tanques de
guerra. Se havia um movimento
militar, tinha que haver tanques
de guerra, certo?
A bem da verdade, era uma das
poucas coisas que eu imaginava
saber sobre golpes militares. Havia, é verdade, acompanhado parte da conspiração prévia, pelo menos a parte que se desenrolava em
São Paulo. Mas conspiração é
uma coisa, golpe é outra.
Fora isso, não tinha a mais remota noção do que poderia acontecer ao e com o país, se o movimento militar de fato ganhasse.
Ou mesmo se perdesse. Era verde
demais para isso, além de estar
preocupado com a gasolina do
DKW azul e com o general
Amaury Kruel, o comandante do
2º Exército.
Todo o mundo dizia que, se ele
aderisse, o golpe vingaria. Se não,
poderia ser o diabo.
O governador Adhemar de Barros estava embarcado no golpe,
para azar dele próprio (foi cassado depois). Portanto, cobrir o Palácio dos Campos Elíseos era um
objetivo secundário, embora
houvesse uma vaga suposição,
nunca levada muito a sério, de
que Kruel poderia atacá-lo, se ficasse leal ao presidente João Goulart, em vez de participar do golpe
em andamento.
Além disso, o palácio estava
bem coberto por um grupo de setoristas tão competentes como
absurdamente irreverentes, entre
os quais havia um "free lancer" do
"Correio".
Passei a noite toda andando
(com o DKW azul, claro) dos
Campos Elíseos para a Conselheiro Crispiniano, sem ter a mais pálida noção do que estava ocorrendo no resto do país. Não havia
"Globo News", "Band News", a rigor não havia "news" alguma na
televisão.
O rádio era a fonte essencial e
privilegiada de informação instantânea, mas meu pai não instalara rádio no DKW azul. Como é
possível cobrir uma revolução
sem TV, sem rádio no carro, sem
internet, sem porcaria nenhuma?
A noite terminou sem que os
tanques se movessem e sem que o
general Kruel se definisse, pelo
menos para mim, maldito "foca".
Quando o sol começou a nascer,
com o tanque do DKW finalmente cheio, voltei para a sucursal. Fiquei então sabendo que o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola (sim, Leonel Brizola, o
próprio, o mesmo de hoje), havia
convocado à resistência, que se
esperava que o presidente João
Goulart desembarcasse em Porto
Alegre para pôr-se à frente dela,
que o general que comandava o
então 3º Exército estava com eles
(o nome se perdeu nas brumas da
memória).
Enfim, a chance de ver finalmente os tanques de guerra em
ação, de ser testemunha ocular da
história, não um motorista atarantado indo e voltando do palácio do governo com fragmentos
de informação que nem mereceriam (como não mereceram) nem
mesmo um pé de página no mais
merreca dos livros de história.
Chance truncada, no entanto,
pelas ordens do chefe. "Vai dormir, menino", ordenou. Como
dormir? Pedi para ir para Porto
Alegre. Iria até com o DKW azul,
se meu pai deixasse, porque, pelo
lenga-lenga que fora a madrugada
nos centros nevrálgicos de São
Paulo, imaginei que conseguiria
chegar à capital gaúcha, mesmo
de carro, em tempo de ver os tanques de um lado e do outro em
ação finalmente.
O chefe foi intransigente. Não,
não era para proteger o futuro
genro, porque nem namorava
ainda a filha dele, hoje minha mulher.
Fazer o que? Rebelar-me também e ir de qualquer jeito para o
Rio Grande? Impossível. O salário
não dava para esses luxos, nem
que meu pai emprestasse o DKW
azul. Ficar no jornal, esperando?
Foi a primeira tentação, mas
ocorreu-me a hipótese de que, se
eu fosse para casa, dormisse umas
duas ou três horas e voltasse à redação, talvez conseguisse convencer o chefe a me mandar para Porto Alegre.
Dormi, sou obrigado a confessar, um pouco mais do que duas
ou três horas, o suficiente para
que a resistência virasse fumaça, o
presidente se asilasse no Uruguai,
o Congresso, marotamente, declarasse vaga a Presidência, ainda
antes da fuga de Goulart, e os tanques completassem o golpe ou a
"Revolução Redentora" (o nome
dependia do lado que você estivesse, contra ou a favor dos tanques).
E meu pai foi placidamente trabalhar com o DKW azul.
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