São Paulo, Sábado, 28 de Agosto de 1999
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ARTIGO
Anistia, ainda que imperfeita

FERNANDO GABEIRA
da Equipe de Articulistas

O que seria de nós, se não tivéssemos voltado para o Brasil? Conheci alguns exilados que não podiam voltar para seu país natal e que estavam resignados com isso. Eram diferentes, pareciam mais graves, mais ancorados na realidade. Faltava a eles uma certa leveza que nos é comunicada pelo sonho de voltar.
Há 20 anos, a anistia era um sonho. E, como tal, tinha suas armadilhas. A principal delas é o confronto com a situação concreta do país. Para muitos, a anistia foi algo imperfeito, limitado. A jornalista Oriana Fallaci andou por aqui e criticou os brasileiros porque perdoaram simultaneamente a esquerda e a extrema direita. Acontece que ela vive num mundo moral, o mundo de como as coisas deveriam ser. A anistia foi mais uma realidade de correlação de forças políticas, o exercício da saída possível num determinado momento histórico.
Como tal, era um processo não concluído que permanece em aberto até hoje. Centenas de cabos e marinheiros, por exemplo, ficaram de fora. Inúmeras medidas administrativas do governo têm dificultado a vida dos que ainda reivindicam seus direitos.
No entanto, o processo avançou. O governo reconheceu a responsabilidade do Estado no desaparecimento das pessoas. No princípio, aceitou avaliar 136 casos e, depois, pressionado pelas famílias, chegou a dobrar esse número.
Um dos grandes batalhadores pela anistia, o deputado Nilmário Miranda (PT-MG), lançou nesta semana um projeto ampliando o raio das compensações também para as famílias dos que foram mortos em manifestações de rua.
Será um novo passo, porque só reconheciam os mortos em dependências do Estado. Mesmo as vítimas da esquerda, assassinados nos chamados justiçamentos ou mesmo acidentalmente na rua, serão também incluídas para efeito de compensação.
Pequenos avanços, mas é assim que as coisas estão caminhando. O Brasil, ao assinar um tratado internacional, comprometeu-se a banir a prática da tortura. Criou-se uma Secretaria Nacional de Direitos Humanos, produzem-se políticas nacionais para o setor -tudo isso são mudanças concretas que não rivalizam com um sonho, mas merecem também uma pequena festa.
Outro confronto entre o sonho e a realidade aconteceu entre o que se esperava de avanço social no Brasil e o que resultou realmente destas quase duas décadas de democracia. Da anistia, saltou-se para outro projeto político: as eleições diretas. Novo confronto entre o sonho e a realidade. Das eleições diretas, saltou-se para o impeachment de Collor, as eleições de Fernando Henrique e, de novo, somos forçados a admitir que as coisas não transcorreram da maneira que desejávamos.
Um novo passo virá por aí e talvez tenhamos aprendido a esperar menos da realidade. A anistia para mim é um momento de lembrar da grande alegria da volta e, sobretudo, dos anos de exílio. Foi uma grande época de liberdade, no sentido de que estar fora possibilitava uma visão crítica do país, um distanciamento essencial, não só para distinguir o Brasil de você, mas também, diria, para distinguir você de você mesmo. Uma experiência existencial radical que permite um encontro de um novo tipo com o próprio país.
Em síntese, é possível comemorar os 20 anos de anistia. Comemorar moderadamente. O processo não se concluiu. Posso dizer que sinto essa inconclusão na pele, quando os norte-americanos me negam o direito de ir à ONU, numa delegação escolhida pelo Congresso brasileiro. Mas os longos anos de ditadura e banimento nos deram uma noção de percurso bem mais flexível. Portanto, ainda que imperfeita, viva a anistia.


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