|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARTIGO
Anistia, ainda que imperfeita
FERNANDO GABEIRA
da Equipe de Articulistas
O que seria de nós, se não tivéssemos voltado para o Brasil?
Conheci alguns exilados que não
podiam voltar para seu país natal e que estavam resignados com
isso. Eram diferentes, pareciam
mais graves, mais ancorados na
realidade. Faltava a eles uma
certa leveza que nos é comunicada pelo sonho de voltar.
Há 20 anos, a anistia era um
sonho. E, como tal, tinha suas armadilhas. A principal delas é o
confronto com a situação concreta do país. Para muitos, a anistia
foi algo imperfeito, limitado. A
jornalista Oriana Fallaci andou
por aqui e criticou os brasileiros
porque perdoaram simultaneamente a esquerda e a extrema direita. Acontece que ela vive num
mundo moral, o mundo de como
as coisas deveriam ser. A anistia
foi mais uma realidade de correlação de forças políticas, o exercício da saída possível num determinado momento histórico.
Como tal, era um processo não
concluído que permanece em
aberto até hoje. Centenas de cabos e marinheiros, por exemplo,
ficaram de fora. Inúmeras medidas administrativas do governo
têm dificultado a vida dos que
ainda reivindicam seus direitos.
No entanto, o processo avançou. O governo reconheceu a responsabilidade do Estado no desaparecimento das pessoas. No
princípio, aceitou avaliar 136 casos e, depois, pressionado pelas
famílias, chegou a dobrar esse
número.
Um dos grandes batalhadores
pela anistia, o deputado Nilmário Miranda (PT-MG), lançou
nesta semana um projeto ampliando o raio das compensações
também para as famílias dos que
foram mortos em manifestações
de rua.
Será um novo passo, porque só
reconheciam os mortos em dependências do Estado. Mesmo as
vítimas da esquerda, assassinados nos chamados justiçamentos
ou mesmo acidentalmente na
rua, serão também incluídas para efeito de compensação.
Pequenos avanços, mas é assim
que as coisas estão caminhando.
O Brasil, ao assinar um tratado
internacional, comprometeu-se a
banir a prática da tortura. Criou-se uma Secretaria Nacional de
Direitos Humanos, produzem-se
políticas nacionais para o setor
-tudo isso são mudanças concretas que não rivalizam com um
sonho, mas merecem também
uma pequena festa.
Outro confronto entre o sonho e
a realidade aconteceu entre o que
se esperava de avanço social no
Brasil e o que resultou realmente
destas quase duas décadas de democracia. Da anistia, saltou-se
para outro projeto político: as
eleições diretas. Novo confronto
entre o sonho e a realidade. Das
eleições diretas, saltou-se para o
impeachment de Collor, as eleições de Fernando Henrique e, de
novo, somos forçados a admitir
que as coisas não transcorreram
da maneira que desejávamos.
Um novo passo virá por aí e talvez tenhamos aprendido a esperar menos da realidade. A anistia
para mim é um momento de lembrar da grande alegria da volta e,
sobretudo, dos anos de exílio. Foi
uma grande época de liberdade,
no sentido de que estar fora possibilitava uma visão crítica do
país, um distanciamento essencial, não só para distinguir o Brasil de você, mas também, diria,
para distinguir você de você mesmo. Uma experiência existencial
radical que permite um encontro
de um novo tipo com o próprio
país.
Em síntese, é possível comemorar os 20 anos de anistia. Comemorar moderadamente. O processo não se concluiu. Posso dizer
que sinto essa inconclusão na pele, quando os norte-americanos
me negam o direito de ir à ONU,
numa delegação escolhida pelo
Congresso brasileiro. Mas os longos anos de ditadura e banimento nos deram uma noção de percurso bem mais flexível. Portanto, ainda que imperfeita, viva a
anistia.
Texto Anterior: Enfermeira foi torturada em parto Próximo Texto: Alagoas: Novo laudo sugere luta na noite da morte de PC Índice
|