São Paulo, segunda-feira, 28 de outubro de 2002

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ANÁLISE

Marketing e pés no chão

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

No rádio costumam dizer que "o pleito decorreu em clima de absoluta normalidade". A frase foi ficando estranha com o tempo. Sugere que deveríamos esperar excessos, pancadaria, tumulto; coisas desse tipo não acontecem há décadas. Mesmo assim, é difícil imaginar eleição presidencial com tão poucos sobressaltos.
Não só porque seu resultado não teria como trazer surpresas, mas também porque, de algum modo, a vitória de Lula já veio impregnada daqueles calmantes e sedativos que o presidente Fernando Henrique vinha receitando ao mercado financeiro.
Algumas advertências conservadoras parecem singularmente deslocadas neste momento. "O candidato não devia ter feito tantas promessas, pois corre o risco de frustrar o eleitorado": eis uma frase que não se aplica ao estado de espírito predominante.
O eleitor pode ser enganado de inúmeras maneiras, mas certamente não acredita mais em promessas mirabolantes; nem as registra. Os próprios candidatos tiveram pouca paciência para fazê-las. A numerologia em torno dos empregos que Serra ou Lula iriam criar foi mais uma encheção de linguiça, numa campanha em que ninguém se arriscava a polêmicas reais, do que algo que a população considerasse seriamente como programa de governo.
Nesse sentido, tampouco se pode falar em "messianismo" a propósito da vitória do candidato petista. Ainda que a eleição de Lula tenha uma forte simbologia -um operário chegando ao poder é raro em qualquer país, ainda mais no Brasil-, o fato não vem acompanhado, por enquanto, de nenhuma mística em torno dos "novos tempos", da idéia de que nada será como antes etc.
Nesta eleição foi grande a presença do marketing e, ao mesmo tempo, foi mínima a presença do espírito utópico. O discurso de Lula frisou mais a idéia da permanência do que da mudança. Insistiu-se mais naquilo que se quer manter do que naquilo que se quer mexer.
É por isso, aliás, que esta eleição ao mesmo tempo significa uma rejeição cabal ao governo Fernando Henrique e permite uma transição de governo das mais pacíficas. A passagem do poder é experimentada, ou apresentada, como se as urnas não tivessem derrotado ninguém. FHC entrega o cargo a Lula como se tivesse feito o seu sucessor.
Quer-se, evidentemente, o fim de longos anos de ortodoxia, desemprego e estagnação. Ao mesmo tempo, o fim da "era FHC" não parece estar sendo vivido como se viveu o fim do regime militar -com a sensação de alívio e descompressão experimentada na vitória de Tancredo Neves no colégio eleitoral.
Quando um regime político autoritário se esgota, a oposição já está com grande parte de sua missão cumprida no momento mesmo em que assume o poder. Mas o tempo da economia é outro: um modelo econômico pode estar levando o país à ruína, e ainda assim não ter entrado em colapso total no momento em que os seus críticos assumem o poder. Daí vem, por certo, a prudência do discurso petista; e o eleitorado, por sua vez, não espera o impossível. É provável que o país esteja tão perto do fundo do poço que todos acabam ficando com o pé no chão.


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