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LANTERNA NA POPA
Tecnologia, modernidade e depois
ROBERTO CAMPOS
Debate-se muito no mundo,
hoje, o que é a tecnologia, o que
ela faz com as pessoas e as sociedades, e que relação tem com essa complicada condição que se
chama "modernidade". Não é
uma disputa ociosa, embora o
terreno costume ficar repleto de
entulho. A atração por fazer
pronunciamentos parece irresistível a muita gente, perdendo-se na barulheira muito do
que valeria a pena escutar. Mas,
pensando bem, é da natureza
das coisas. Todos os homens
têm dentro de si algum embrião
de filósofo, e, ao contribuirmos
com nosso dó de peito, estamos
simplesmente vivendo.
Tecnologia é um campo novo
de indagação. A curiosidade pela "arte de fazer" deve ser tão remota quanto o primeiro antepassado do homo sapiens, que
matutou sobre como lascar a
pedra do seu machado. O processo, no entanto, foi lento, no
ritmo de muitas gerações, e
muito ligado à evolução das demandas concretas da vida material. Os gregos clássicos, que
construíram os alicerces do maravilhoso edifício do pensamento abstrato sobre o qual ainda
hoje se assenta nossa civilização, não relacionavam a teoria
à "tecnologia". A tal ponto, que
Aristóteles podia indignar-se,
com toda a naturalidade, contra Hipódamo de Mileto, que
propunha uma forma rudimentar de estímulo à inovação tecnológica. Hoje, só os Estados
Unidos gastam perto de 220 bilhões de dólares anuais com
pesquisas e desenvolvimento.
O pensamento filosófico atual
anda repleto de ambiguidades
sobre o tema. Nos anos 60 e começo dos 70, a "Escola de
Frankfurt", que aglomerava
uma brilhante esquerda crítica
não ligada ao pensamento oficial soviético, dividiu-se no debate entre Marcuse e Habermas. Aquele, negativo quanto à
neutralidade da tecnologia, enquanto este, defendendo a idéia
de modernidade, via a tecnologia como aplicação puramente
instrumental de uma racionalidade não-social. Já os frankfurtianos Adorno e Horkheimer
arguiam que a instrumentalidade constitui uma forma de
dominação e que controlar objetos viola e destrói a sua integridade. Assim, a tecnologia
não poderia ser neutra, e o simples fato de usá-la implicaria
uma posição valorativa. Bom
exemplo de descolagem da realidade em direção a uma nebulosa utopia. Outros pensadores,
como Heidegger e J. Ellul, desconfiavam tanto da tecnologia
que podem ser classificados como "tecnófobos".
Ser humano algum pode existir sem, ao mesmo tempo, mexer
no mundo real, onde "coisas"
são "feitas". Tecnologia não é
senão isso: modo de fazer. Habermas é interessante, porque
considera os radicais dos anos
60 (então, principalmente, Marcuse e a Nova Esquerda) como
"antimodernos", embora considere a si mesmo um crítico do
caráter incompleto da modernidade. Essa ótica casa bem com a
crítica que Marx fez ao mercado, na qual reconhece que este
possui uma ordem racional baseada na igualdade das transações. A crítica de Marx ao capitalismo se concentra na sua forma histórica concreta, em que
as transações levam à incessante acumulação de capital e a
uma crise de subconsumo.
O filósofo contemporâneo L.
C. Simpson tentou recolocar a
questão para mostrar que a tecnologia, com sua ênfase sobre a
eficiência e o controle, realiza
uma "domesticação do tempo",
reduzindo-se a unidades manipuláveis e descartáveis, orientadas para objetivos futuros. De
modo que, à medida que o paradigma funcional da tecnologia ganha mais autoridade sobre nós, nossa compreensão do
sentido da ação fica correspondentemente distorcida. Perdem
outras fontes de ação, que também fazem parte do nosso universo de vida, tais como a comunicação, a amizade, o amor, a
paternidade e assim por diante.
O leitor estará desculpado se
achar que esses pensadores estão enrolando ainda mais um
assunto em si mesmo enrolado.
Eu também acho.
A velocidade crescente com
que o tempo se move já nos deixou para trás. Não dá mais para contá-lo por gerações, como
ainda podiam fazer os nossos
avós. A ficção científica perdeu
a graça, deixada na poeira pela
própria realidade científica. A
sociedade da informação anunciou-se como a revolução das
revoluções. Mesmo os governos
sóbrios dos países altamente industrializados repetem o termo
"revolução" em quantos documentos produzem sobre essas
questões. E têm sua razão, porque a informática e as telecomunicações estão acabando
dramaticamente com o tempo e
a distância, passando por cima
de governos, fronteiras e nações.
As pessoas podem comunicar-se
instantaneamente por toda a
superfície da Terra e classificar
dados e conhecimento em tempo real. A globalização dos anos
80, precedida nos anos 70 pela
explosão dos mercados financeiros muito além de qualquer
controle das autoridades nacionais, não foi senão uma consequência dos radicais câmbios
tecnológicos que já vinham
ocorrendo na informação e nas
comunicações. Os governos mal
começaram a ter políticas ativas e abrangentes em matéria
de ciência e tecnologia por volta
da Segunda Guerra e, ainda assim, premidos pelas necessidades militares. Hoje, os dispêndios com ciência e tecnologia,
em todo o mundo, montam a
bem mais de meio trilhão de dólares por ano. E não falemos da
engenharia genética, que reforma organismos vivos, amedrontando muita gente pelos riscos
do aprendiz de feiticeiro.
Há vários anos, acharam alguns que a modernidade estava
esgotada e que entrávamos numa era pós-moderna, em que o
sujeito é um observador irônico
e distante de um universo reduzido a uma superabundância
de imagens e espetáculos, não
interligados por nenhum fio
condutor visível. O modo de fazer suplantaria a indagação sobre o sentido do que é feito. A
nossa é uma dessas épocas em
que a poeira das perguntas demora a assentar e quando as
respostas chegam, já estão obsoletas.
Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado
federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor
de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks,
1994).
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