São Paulo, Domingo, 28 de Novembro de 1999


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LANTERNA NA POPA
Tecnologia, modernidade e depois

ROBERTO CAMPOS

Debate-se muito no mundo, hoje, o que é a tecnologia, o que ela faz com as pessoas e as sociedades, e que relação tem com essa complicada condição que se chama "modernidade". Não é uma disputa ociosa, embora o terreno costume ficar repleto de entulho. A atração por fazer pronunciamentos parece irresistível a muita gente, perdendo-se na barulheira muito do que valeria a pena escutar. Mas, pensando bem, é da natureza das coisas. Todos os homens têm dentro de si algum embrião de filósofo, e, ao contribuirmos com nosso dó de peito, estamos simplesmente vivendo.
Tecnologia é um campo novo de indagação. A curiosidade pela "arte de fazer" deve ser tão remota quanto o primeiro antepassado do homo sapiens, que matutou sobre como lascar a pedra do seu machado. O processo, no entanto, foi lento, no ritmo de muitas gerações, e muito ligado à evolução das demandas concretas da vida material. Os gregos clássicos, que construíram os alicerces do maravilhoso edifício do pensamento abstrato sobre o qual ainda hoje se assenta nossa civilização, não relacionavam a teoria à "tecnologia". A tal ponto, que Aristóteles podia indignar-se, com toda a naturalidade, contra Hipódamo de Mileto, que propunha uma forma rudimentar de estímulo à inovação tecnológica. Hoje, só os Estados Unidos gastam perto de 220 bilhões de dólares anuais com pesquisas e desenvolvimento.
O pensamento filosófico atual anda repleto de ambiguidades sobre o tema. Nos anos 60 e começo dos 70, a "Escola de Frankfurt", que aglomerava uma brilhante esquerda crítica não ligada ao pensamento oficial soviético, dividiu-se no debate entre Marcuse e Habermas. Aquele, negativo quanto à neutralidade da tecnologia, enquanto este, defendendo a idéia de modernidade, via a tecnologia como aplicação puramente instrumental de uma racionalidade não-social. Já os frankfurtianos Adorno e Horkheimer arguiam que a instrumentalidade constitui uma forma de dominação e que controlar objetos viola e destrói a sua integridade. Assim, a tecnologia não poderia ser neutra, e o simples fato de usá-la implicaria uma posição valorativa. Bom exemplo de descolagem da realidade em direção a uma nebulosa utopia. Outros pensadores, como Heidegger e J. Ellul, desconfiavam tanto da tecnologia que podem ser classificados como "tecnófobos".
Ser humano algum pode existir sem, ao mesmo tempo, mexer no mundo real, onde "coisas" são "feitas". Tecnologia não é senão isso: modo de fazer. Habermas é interessante, porque considera os radicais dos anos 60 (então, principalmente, Marcuse e a Nova Esquerda) como "antimodernos", embora considere a si mesmo um crítico do caráter incompleto da modernidade. Essa ótica casa bem com a crítica que Marx fez ao mercado, na qual reconhece que este possui uma ordem racional baseada na igualdade das transações. A crítica de Marx ao capitalismo se concentra na sua forma histórica concreta, em que as transações levam à incessante acumulação de capital e a uma crise de subconsumo.
O filósofo contemporâneo L. C. Simpson tentou recolocar a questão para mostrar que a tecnologia, com sua ênfase sobre a eficiência e o controle, realiza uma "domesticação do tempo", reduzindo-se a unidades manipuláveis e descartáveis, orientadas para objetivos futuros. De modo que, à medida que o paradigma funcional da tecnologia ganha mais autoridade sobre nós, nossa compreensão do sentido da ação fica correspondentemente distorcida. Perdem outras fontes de ação, que também fazem parte do nosso universo de vida, tais como a comunicação, a amizade, o amor, a paternidade e assim por diante.
O leitor estará desculpado se achar que esses pensadores estão enrolando ainda mais um assunto em si mesmo enrolado. Eu também acho.
A velocidade crescente com que o tempo se move já nos deixou para trás. Não dá mais para contá-lo por gerações, como ainda podiam fazer os nossos avós. A ficção científica perdeu a graça, deixada na poeira pela própria realidade científica. A sociedade da informação anunciou-se como a revolução das revoluções. Mesmo os governos sóbrios dos países altamente industrializados repetem o termo "revolução" em quantos documentos produzem sobre essas questões. E têm sua razão, porque a informática e as telecomunicações estão acabando dramaticamente com o tempo e a distância, passando por cima de governos, fronteiras e nações. As pessoas podem comunicar-se instantaneamente por toda a superfície da Terra e classificar dados e conhecimento em tempo real. A globalização dos anos 80, precedida nos anos 70 pela explosão dos mercados financeiros muito além de qualquer controle das autoridades nacionais, não foi senão uma consequência dos radicais câmbios tecnológicos que já vinham ocorrendo na informação e nas comunicações. Os governos mal começaram a ter políticas ativas e abrangentes em matéria de ciência e tecnologia por volta da Segunda Guerra e, ainda assim, premidos pelas necessidades militares. Hoje, os dispêndios com ciência e tecnologia, em todo o mundo, montam a bem mais de meio trilhão de dólares por ano. E não falemos da engenharia genética, que reforma organismos vivos, amedrontando muita gente pelos riscos do aprendiz de feiticeiro.
Há vários anos, acharam alguns que a modernidade estava esgotada e que entrávamos numa era pós-moderna, em que o sujeito é um observador irônico e distante de um universo reduzido a uma superabundância de imagens e espetáculos, não interligados por nenhum fio condutor visível. O modo de fazer suplantaria a indagação sobre o sentido do que é feito. A nossa é uma dessas épocas em que a poeira das perguntas demora a assentar e quando as respostas chegam, já estão obsoletas.


Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).


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