São Paulo, Terça-feira, 29 de Junho de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LEIA AS ÍNTEGRAS DOS DISCURSOS DE FHC
da Redação

Leia abaixo o discurso do presidente Fernando Henrique Cardoso na abertura da reunião de trabalho dos chefes de Estado e de governo do Mercosul e Chile e da União Européia, ontem, no Rio de Janeiro.

"Tenho satisfação muito especial de dar início aos trabalhos deste encontro. Aqui estaremos, juntos, tomando decisões cruciais para o desenvolvimento e o bem-estar de nossos povos.
O relacionamento entre o Mercosul e a União Européia tem praticamente a mesma idade do próprio Mercosul. Apenas um mês após a assinatura do Tratado de Assunção, oito anos atrás, reuniam-se pela primeira vez nossos ministros de Relações Exteriores.
Desde então, construímos uma tradição de diálogo e de aproximação progressiva, que demonstra o interesse das duas regiões de fortalecer os seus vínculos e a consciência do quanto temos a ganhar com isso.
O acordo-quadro que assinamos em Madri, em 1995, foi um passo importante. Estabelecemos o objetivo comum de construir uma associação inter-regional nos terrenos político, econômico e de cooperação.
As sementes frutificaram.
Na esfera política, já conviemos no propósito de aprofundar o diálogo e a coordenação. Esse é um instrumento essencial para promover nossos valores compartilhados e tornar a sociedade internacional mais democrática e participativa.
Procuramos igualmente incrementar a cooperação destinada a reforçar o processo de integração do Cone Sul e a estimular o aumento do comércio e a transferência de tecnologia.
Depois de procedermos a uma avaliação dos intercâmbios atuais e potenciais entre as duas regiões e de suas perspectivas, estamos hoje prontos para a decisão de lançar negociações com vistas à liberalização das trocas comerciais.
Os presidentes dos países do Mercosul reunimo-nos há apenas 15 dias, em Assunção, onde reiteramos o propósito de construir um mercado comum apoiado nos pilares da democracia, da estabilidade econômica e da justiça social.
O Mercosul tem sido uma alavanca para o desenvolvimento de nossos países. Estamos empenhados em aprofundar nossa integração, aceitando o desafio de intensificar a coordenação macroeconômica, a começar pelas questões que dizem respeito à política fiscal, e de caminhar para a adoção de uma moeda comum.
Ao mesmo tempo, desejamos intensificar os vínculos do Mercosul com os demais países da América do Sul, rumo a um espaço de prosperidade compartilhada. São animadores os resultados e perspectivas dos acordos concluídos com o Chile e a Bolívia, países que se vêm associando de forma cada vez mais abrangente ao nosso esforço integrador.
O Mercosul afirma-se como um dos principais elementos em nossa estratégia de crescimento e de projeção internacional.
O relacionamento com a União Européia configura outra dimensão -que estimamos também fundamental- da mesma estratégia.
O avanço na direção de uma associação inter-regional é indispensável para que possamos manter o equilíbrio e a diversidade de nossas relações externas, complementando outras iniciativas da mesma natureza, em particular a construção da parceria hemisférica.
O desafio da globalização impõe-nos o esforço de desenvolver todas as vertentes e possibilidades de cooperação e intercâmbio.
Os projetos de associação do Mercosul e do Chile com a União Européia abrem, assim, uma nova página na história de nosso relacionamento. Refletem promissoras perspectivas de comércio e investimentos. Orientam-se pela preocupação comum a ambas as regiões de unir a estabilidade ao crescimento e à geração de empregos.
Pretendemos lançar hoje as bases de um vínculo comercial mais forte, mediante a abertura de negociações para a progressiva liberalização das trocas entre o Mercosul e o Chile e a União Européia.
O início desse processo negociador, tendo como objetivo último o livre comércio, representará um salto qualitativo em nossas relações.
A própria experiência da integração, tanto na União Européia quanto no Mercosul, tem demonstrado ao longo do tempo que a abertura recíproca de mercados é fator primordial na construção de associações sólidas e dinâmicas. Esse é um projeto que ultrapassa a dimensão comercial e afirma sua importância também no plano político.
São assim justificadas as expectativas que desperta nossa reunião de hoje.
O que podemos fazer aqui hoje terá consequências não apenas para o momento presente, mas para as gerações futuras, que terão as vantagens de um comércio mais livre entre a Europa e a América do Sul. Esse é o nosso desafio. Esse é o nosso mandato. Vamos cumpri-lo. Muito obrigado."

Leia abaixo o discurso de FHC na abertura da reunião dos chefes de Estado e de governo da América Latina, do Caribe e da União Européia.
"O Rio de Janeiro -que foi durante muito tempo a capital do Brasil e que é, de certa forma, uma síntese de nossa história- transforma-se no dia de hoje em uma capital latino-americana, caribenha e européia. O mesmo Rio de Janeiro que é, também, símbolo da proximidade entre os dois continentes, na medida em que foi, por alguns anos antes da nossa independência, a sede de um Estado bicontinental, transoceânico -que unia o Brasil a Portugal e Algarves-, com a presença aqui da família real portuguesa.
O mesmo Rio de Janeiro que abrigou, há sete anos, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento -evento único em sua dimensão- recebe hoje os chefes de Estado e de governo de nossa região e da União Européia para uma ocasião histórica.
Para o Brasil, para os cariocas e para mim pessoalmente, é muito importante que esta reunião se realize aqui. Em nome de todos os brasileiros, dou-lhes as nossas mais calorosas boas-vindas.
Em quase todos os lados desta nossa América encontramos marcas da presença européia, desde os tempos arrojados dos grandes navegadores portugueses, espanhóis e italianos.
E as encontramos em tal profusão e mescla que ao sul da Patagônia inscreveu-se para sempre o nome do português Fernão de Magalhães. Ao norte do Brasil e no Orinoco sobressai o do espanhol Pinzón. E não foi outro senão Vespúcio, italiano, quem deu seu nome ao continente: América.
Nosso próprio nome, Brasil, além da referência mais tradicional à madeira que daqui se extraía em grandes quantidades, remete também a outros significados. A designação da mitológica "Ilha do Brasil" vem do celta "bress", que originou o inglês "bless", abençoar. Não será por acaso que o símbolo do Rio é o Cristo Redentor do Corcovado, abençoando todos os que aqui aportam.
Essa disposição à acolhida foi precedida pela presença, nem sempre pacífica, de vários países europeus. No Nordeste do Brasil, os holandeses, no século 17, foram colonizadores por decênios. Franceses marcaram sua presença tanto no Maranhão como no Rio de Janeiro (basta ver o nome da ilha em frente a nós, de Villegaignon).
Em compensação, foram judeus holandeses provindos de Pernambuco que também no século 17 plantaram suas raízes no que hoje é Nova York.
Isso para não falar na presença européia no México, no Caribe, em toda a parte, e sem mencionar os tempos da união das duas coroas ibéricas, quando as velhas disputas entre Portugal e Espanha diluíram-se, tornando a todos súditos do mesmo rei.
Por todas essas razões, este é um reencontro histórico. Temos diante de nós uma tarefa ambiciosa: a de inaugurar nova era nas relações entre a América Latina e Caribe e a União Européia, recuperando e redefinindo nossa história comum.
Vivemos um momento no qual o sistema internacional se redesenha, sob o impacto de processos de transformação sem precedentes, no plano da política, da economia, da sociedade, da tecnologia. Certezas antigas foram descartadas, e o presente é, em grande medida, feito de inquietude. Convivem elementos de ordem e desordem, de enorme prosperidade e enormes desigualdades, de legitimidade e ilegitimidade. Convivem as esperanças alimentadas pela atenuação das confrontações ideológicas com as frustrações de tantos que, nas diferentes regiões do mundo, ainda sofrem as consequências de situações de conflito, de intolerância ou de injustiça social.
O que fizermos juntos ajudará a definir os contornos da ordem internacional no século 21, que deve ser uma ordem plural, mais justa, sem monopólios da prosperidade ou do poder. Uma ordem na qual a aspiração à liderança não seja concebível sem a aspiração à legitimidade.
Por que deveriam Europa e América Latina e Caribe ter uma perspectiva comum na construção da ordem internacional? Porque temos valores comuns, essenciais, amadurecidos ao longo do tempo e enraizados em nossas sociedades. Porque compartilhamos uma mesma herança cultural. Porque possuímos preocupações e interesses convergentes.
A independência dos países da América marcou um certo distanciamento da Europa, mas se fez inspirada, em boa parte, em idéias do Século das Luzes europeu. Os ideais da Revolução Francesa, de liberdade, igualdade e fraternidade, alimentaram o espírito da nossa independência e continuam iluminando os caminhos do futuro.
Hoje, esses temas articulam-se em torno das idéias de liberdade, democracia, direitos humanos, pluralismo, transparência na gestão pública, desenvolvimento econômico com justiça social, proteção do meio ambiente.
Coincidimos num conceito de modernidade pautado pela inclusão dos que ainda são pobres, miseráveis e alienados da cidadania, pela participação de todos nos benefícios do progresso, da justiça, da segurança.
Esses mesmos valores devem vigorar no plano internacional. Com nosso trabalho conjunto, podemos favorecer uma ordem mais democrática. Parece estar hoje ao nosso alcance, como nunca antes, um mundo no qual todas as energias se possam dirigir para aumentar o bem-estar e promover o desenvolvimento integral da pessoa humana.
A busca desse objetivo requer um comprometimento sério com o sistema multilateral de comércio, cuja agenda deve refletir de maneira equilibrada os interesses e aspirações de todos os seus membros, grandes ou pequenos, ricos ou pobres. A "Rodada do Milênio" deverá traduzir em resultados concretos essa preocupação.
Requer que se aprofunde a discussão sobre a arquitetura internacional, de modo a garantir que os fluxos de capital sejam instrumento de progresso e não foco gerador de instabilidade ou simples mecanismo de concentração da renda, como até hoje.
A globalização -tanto no plano comercial quanto no financeiro- é um processo irreversível, mas seus efeitos dependem de nossas decisões e de nossas ações. Depende de nós fazer com que ela promova as oportunidades de desenvolvimento, que favoreça o investimento produtivo, que reduza as assimetrias de riqueza e de bem-estar. E é preciso reconhecer: as realidades de hoje ainda estão longe de responder a essas expectativas.
A globalização deve valer para todos. Não pode ser dádiva para os ricos e privação para os pobres. Transformar a globalização assimétrica em globalização solidária é uma questão de justiça e de aspiração democrática. É do interesse geral.
Na economia mundial que emerge neste final de século -fundada nos desafios da competição e da produtividade, no conhecimento e na informação, nas vantagens da tecnologia- é fundamental que os esforços de abertura e modernização dos países em desenvolvimento encontrem a necessária contrapartida de reciprocidade nos países desenvolvidos. As mesmas nações que se beneficiam da liberalização dos fluxos comerciais e financeiros não podem ignorar que o protecionismo aberto ou disfarçado, a discriminação, o unilateralismo, a voracidade especulativa dos mercados contribuem para debilitar as relações econômicas, em detrimento de todos.
No plano político, nossos objetivos de paz e justiça exigem que se avance na reforma das Nações Unidas e no fortalecimento do Conselho de Segurança, que deve constituir o centro do sistema de segurança internacional, imprescindível para dar legitimidade às ações da comunidade internacional em favor da paz.
A crise do Kosovo deixa-nos a lição de que a paz duradoura passa necessariamente pela ONU. E a tragédia do Kosovo, revivendo os horrores da "pureza racial" nazista e da morte de civis inocentes nos bombardeios de alta tecnologia, infelizmente, se é o mais visível dos problemas da paz no mundo, não é o único. Basta olhar para o Oriente Médio, para Angola, para o Timor Leste, para vermos ampliar-se a lista de preocupações.
Senhoras e senhores, a União Européia vem ao Rio fortalecida em sua obra de integração pelos recentes avanços na adoção de uma moeda única e na construção de uma política externa e de segurança comum. Esses avanços confirmam a União Européia como parceiro absolutamente indispensável, capaz de contribuir para um maior equilíbrio das relações internacionais.
A América Latina e o Caribe têm condições para participar plenamente desse novo cenário.
Somos uma região de vocação democrática e pacífica, de sociedades multirraciais em que a coexistência de culturas, etnias e religiões tem sido uma fonte de criatividade, de síntese e de enriquecimento. Em nossas sociedades, o elemento europeu convive e se mistura com outras influências importantes, como a indígena e a africana. Construímos culturas e padrões de civilização originais, mas a consciência disso em hipótese alguma relativiza nossa adesão a princípios e valores universais.
América Latina, Caribe e Europa têm consciência de que a cultura é algo que pode unir sem sufocar a diversidade. Em um mundo no qual as distâncias desaparecem e os contatos humanos se vêem favorecidos pela facilidade de comunicação, mais do que nunca o pluralismo é um patrimônio a ser preservado.
No plano da segurança, somos a região do mundo que, proporcionalmente, menos recursos gasta em armamentos, e a primeira a constituir-se como zona livre de armas nucleares.
Cultivamos uma tradição de paz e de respeito ao direito internacional. Recentemente, dois países irmãos da América do Sul -Equador e Peru- souberam, pela via da negociação e do entendimento, pôr termos definitivamente a seus litígios territoriais.
No terreno econômico, há muito deixamos para trás a paralisia da "década perdida". Para nossa região, os anos 90 têm sido uma década de vitórias: vitórias da democracia, vitórias da estabilidade econômica, vitórias na luta contra as turbulências financeiras, vitórias das transformações e reformas que nos dão rumo firme e confiante. Vitórias contra a inflação, contra o atraso, contra estruturas arcaicas que impedem a justiça e o progresso social. Falta vencer, ainda, a batalha do desemprego. Nela estamos empenhados.
Construímos uma inserção mais competitiva nos fluxos econômicos globais.
Fizemos uma opção decidida pela integração regional como ferramenta de competitividade e desenvolvimento -campo em que o exemplo europeu tanto nos tem inspirado.
Anima-nos a certeza de que os diferentes processos de integração em curso na América Latina e Caribe -o Mercosul, a Comunidade Andina, o Caricom, o Sistema de Integração Centro-Americano- continuarão a ser um dos principais fatores de desenvolvimento da região e a enriquecer nosso relacionamento com os parceiros extra-regionais.
Tenho o prazer de assinalar que os chefes de Estado e de governo dos países do Mercosul e da União Européia acabamos de chegar a um entendimento que nos permitirá iniciar negociações para estabelecer uma associação inter-regional política e econômica, que incluirá a liberalização de todo o comércio entre as duas regiões.
Marcharemos juntos, sem concessões unilaterais nem discriminações de setores produtivos.
Senhoras e senhores, temos uma ampla agenda a tratar nestes próximos dois dias. Vamos discutir as grandes questões da atualidade internacional e os principais temas específicos do relacionamento entre as duas regiões nos campos político, econômico-social e cultural. Vamos definir ações e instrumentos diversos de diálogo e cooperação. Vamos dar o exemplo de um processo decisório aberto e participativo, baseado numa ampla discussão de nossos diversos interesses e na convergência de nossas visões de mundo.
Como lhes disse, essa é uma tarefa ambiciosa. Mas o que está em jogo é fundamental. É a realização dos valores nos quais acreditamos. É o desenvolvimento de uma prosperidade compartilhada, buscando diminuir as diferenças de renda e de qualidade de vida entre nossas economias e nossos povos. É a construção de uma ordem internacional legítima, onde a paz e a justiça caminhem de mãos dadas. É o esforço para prevenir os efeitos danosos dos vendavais especulativos sobre as finanças nacionais.
No mundo atual, nenhum país ou grupo de países pode assumir o risco do isolamento. A ilusão do fechamento é o caminho mais certo para a estagnação e a irrelevância.
Com o encontro de hoje, América Latina, Caribe e Europa estão demonstrando a sua determinação de trabalhar juntos.
Sejamos sócios.
Sejamos parceiros nesse projeto fascinante que já é o século 21.
Muito obrigado."


Texto Anterior: "País aceita caminhar para a moeda comum"
Próximo Texto: País não é posto de exportações, diz FHC
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.