São Paulo, terça-feira, 29 de outubro de 2002

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ENTREVISTA

Luiz Carlos Mendonça de Barros diz que PT tem de adiar promessas, fazer um governo duro em 2003 e sugere Dirceu na Fazenda

"Lula terá de passar vergonha", diz Mendonça

VINICIUS TORRES FREIRE
EDITOR DE DINHEIRO

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL

O governo Lula vai ter de "passar vergonha" a fim de dar tranquilidade à economia, antes de dar início a uma administração em que possa cumprir compromissos de campanha. A avaliação é do economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, 59, ex-presidente do BNDES, ex-ministro das Comunicações do governo Fernando Henrique Cardoso, sócio e editor do site de economia e política "Primeira Leitura". "Passar vergonha", na avaliação de Mendonça de Barros, é avisar ao país que alguns dos compromissos de campanha pelo menos por ora devem ter sua realização adiada. Mais: significa ter de adotar políticas duras e impopulares, como manter alta a alíquota de impostos e a taxa de juros, entre outras medidas adotadas pelo governo FHC e criticadas pelo PT até há bem pouco tempo. O economista sugere também que, para facilitar a tarefa de passar vergonha, o PT jogue a culpa da crise econômica em Fernando Henrique Cardoso e em Pedro Malan, ministro da Fazenda. Mendonça de Barros acredita que o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, não tem consciência precisa da dimensão dos problemas que a economia brasileira deve enfrentar no ano que vem. "O PT deixou em segundo plano os economistas que representavam seu pensamento econômico organizado, os que poderiam organizar uma política econômica coerente, embora defasada. Nem tem quem explique aos políticos do partido o que precisa ser feito", diz o economista, que apoiou o candidato do PSDB à Presidência, José Serra. Mendonça de Barros não tem idéia de quem possa assumir os cargos mais importantes da economia no governo petista. Mas o economista avalia que o PT tem ótimos políticos, como o presidente do partido, José Dirceu (a quem chama de "Sérgio Motta de Lula"), e Antônio Palocci, coordenador do programa de governo de Lula. Dirceu e Palocci até poderiam assumir a política econômica, pois têm autoridade e capacidade política para tanto, desde que comandassem um grupo de técnicos de qualidade e respaldado pelo presidente da República, sugere. Economistas ortodoxos, como Paulo Leme (diretor do banco americano Goldman Sachs) e banqueiros como Roberto Setúbal (presidente do Itaú) no Banco Central ou na Fazenda não conviriam ao PT, diz, por serem muito distantes da história e das teses petistas. "Mas é preciso de alguém que saiba o que é preciso fazer, que adote as medidas duras agora, para o Lula ter a oportunidade de fazer um bom governo nos outros três anos". Para Mendonça de Barros, o país vai entrar em recessão em 2003. A economia vai encolher 2%, a inflação vai subir, assim como os juros. Tudo para que o país obtenha um superávit comercial entre US$ 15 bilhões a US$ 20 bilhões no ano que vem. Os dólares das exportações são vitais e imprescindíveis a fim de evitar que o país sofra uma crise cambial ainda mais grave e corra o risco de deixar de fazer pagamentos externos.

Folha - O que é o pensamento econômico do PT hoje? Parece que abandonaram o pensamento de economistas mais tradicionais no partido, como a Maria da Conceição Tavares.
Luiz Carlos Mendonça de Barros
-Isso, a Maria Conceição, o Paul Singer... É o pensamento da Unicamp, que é aquilo que chamei de pós-keynesianismo, um pensamento que está muito bem expresso num artigo da Conceição, na Folha, chamado "Novos Rumos", que não teve maior destaque, porque o PT que as pessoas estão olhando é o PT do Mantega, do Palocci, que está tentando fazer uma colcha de retalhos para acalmar o chamado mercado. Outro exemplo do pensamento do PT é uma entrevista que o Ricardo Carneiro deu para o "Valor" e que foi uma confusão danada. Eles pegaram o Ricardo Carneiro...

Folha - E esconderam.
Barros
- E esconderam, mas ele está lá, certo? Mas nunca o pensamento econômico do PT se expressou numa política econômica organizada, porque o partido era um partido de oposição, feita muito mais no sentido de criticar o que o governo Fernando Henrique Cardoso que fazia, não em criar alternativa.
Aliás, boa parte do apoio que o Lula teve se deve à situação insustentável da economia. O maior desemprego do IBGE, em São Paulo, foi no mês que antecedeu as eleições. Essa situação é decorrência dos erros do malanismo.
Você tem um partido agora que cresce em termos de práxis política e de poder. Esse partido esquece de que, para que ele seja um partido exitoso no poder, além de ter essa capacidade de operar a opinião pública, apoio do Congresso e tal, ele precisa ter um pensamento econômico que trate dos problemas concretos do país. Isso o PT não desenvolveu.
O que acontece agora? A situação é de crise, em que a questão central é a confiabilidade dos mercados. Como o grupo do PT (e o Palocci é o representante desse grupo) percebeu a reação violenta dos mercados à hipótese da eleição de Lula, eles falaram o seguinte: olha, se nós não criarmos aqui um negócio novo, que mais ou menos seja na linha da nossa linha política e das nossas promessas, mas também que seja visto como algo confiável pelo mercado, nós estamos estrepados.

Folha - Você acha que esse pessoal se afastou estrategicamente, mas volta depois?
Barros -
Não sei. O PT continua não tendo pensamento econômico, porque afastou esse pessoal que por bem ou por mal tinha um modelo na sua cabeça. Por mais errado e desatualizado que fosse.
Hoje [quinta-feira passada], por exemplo, vieram me dizer que o ministro da Fazenda seria o Roberto Setúbal. Parece um absurdo: primeiro, Roberto Setúbal é banqueiro, não é economista, e o governo precisa ter o que chamo de uma teoria econômica que feche, que seja viável. Segundo, depois de tudo o que o Lula falou sobre banqueiro, juro, bá-bá-bá, como é que você pode dar o Ministério da Fazenda para um banqueiro? Outro boato: o presidente do Banco Central vai ser aquele rapaz da Goldman Sachs...

Folha - Paulo Leme.
Barros
- Paulo Leme, que é um ortodoxo. Radical, ele está à direita do Armínio Fraga. Não pode haver uma divergência tão grande entre pensamento econômico e o programa de governo.

Folha - O PT não têm a menor idéia do que vai fazer?
Barros
- Ah, não tem, não tem, não tem a menor idéia. O Lula não tem a menor idéia. O Dirceu não tem a menor idéia. O Palocci não tem a menor idéia, é médico. Eles precisam de alguém que produza um programa coerente.
Como se equilibram consumo, investimento, déficit em conta corrente, resultado fiscal, inflação? Para que um país como o Brasil tenha no curto prazo um superávit comercial de US$ 20 bilhões, o consumo interno tem de ser reduzido. Alguém vai dizer: "Ah, mas tem capacidade ociosa". Mas é uma capacidade ociosa [da indústria" que não é homogênea. Tem em certos setores e não tem em outros. Mas o que a teoria diz é: se quero vender mais fora, sou obrigado a reduzir o consumo do país, a absorção interna. Podem dizer: "Ah, mas nós vamos investir, aumentar a produção etc". Tudo bem, mas só que para fazer uma fábrica, para aumentar a produção são dois ou três anos. Se eu quero ganhar exportação agora, tenho de fazer...

Folha - Recessão ou inflação.
Barros
- Recessão ou inflação.

Folha - Tenha ou não idéia do que fazer, o PT tem seus compromissos muito fortes: aumento do salário mínimo, não cortar na Previdência, o aumento do funcionalismo. O PT diz que pode fazer isso cortando despesa corrente. Dá?
Barros
- Vêm com aquela tese: nós vamos economizar e vamos acabar com a sonegação. Piada isso. Piada. Piada principalmente depois de um período em que a carga tributária brasileira subiu dessa forma. Se há um setor que funcionou no governo FHC foi a Receita Federal. Pior, nos últimos anos houve uma série de receitas extraordinárias.

Folha - Bom, é difícil cortar gasto corrente, não vai ter receita extraordinária e é preciso de mais superávit fiscal. Vai ter algum dinheiro no governo no primeiro ano?
Barros
- Vou agravar ainda mais esse seu quadro: vai haver recessão. Vai haver por uma simples razão: para manter o superávit comercial. Economia em recessão reduz a receita de impostos. A conta não fecha.

Folha - Vamos mesmo precisar de um saldo comercial de US$ 20 bilhões? A seca de crédito continua?
Barros -
Não muda. Bancos estrangeiros estão expondo seus resultados e dando como fator de fortalecimento do banco a redução de sua exposição ao Brasil.

Folha - Mas a seca de crédito dura 2003 inteiro, na sua opinião?
Barros
Pode ser que não, que o cenário melhore no último trimestre. Mas o pressuposto não pode ser esse. O governo tem de ser conservador no seu cenário.
Em 2003, o único dinheiro que vem de fora é o dinheiro do FMI. Para estabilizar o câmbio, precisa de um superávit comercial da ordem de US$ 15 bilhões ou US$ 20 bilhões, mais uma entrada de investimento direto da ordem de US$ 6 bilhões a US$ 8 bilhões.
O governo tem de fazer a seguinte programação para o ano que vem: queda do PIB da ordem de 2% para gerar um saldo comercial da ordem de US$ 15 bilhões a US$ 20 bilhões para estabilizar as contas externas.

Folha - E a inflação?
Barros
Se a economia estiver em recessão, se os juros estiverem altos, nós vamos ter uma inflação, picando aí em algum momento no meio do ano em 15%.

Folha - Com o dólar a quanto?
Barros
- Com o dólar nesse nível aí, a R$ 3,70. Não pode ser menos.

Folha - Voltando para a área fiscal. O Lula vai ter de recuperar parte da arrecadação que vai perder, no Imposto de Renda, por exemplo. A alíquota mais alta está para cair.
Barros -
Aí vai ser uma coisa engraçada, porque são todas ações que o PT bloqueou na época do Fernando Henrique. Quer dizer, o PT vai ter que passar vergonha, sabe? Vai ter de se desgastar fazendo coisas muito semelhantes ao que o Fernando Henrique fez.

Folha - Se a inflação for a 15%, vai ser preciso manter o juro real. A taxa básica vai para 24%, 25%.
Barros -
Ou 26%.

Folha - O sr. prevê recessão de 2%. Se a economia cair tanto pode haver mais falência que inflação.
Barros
- Mas a inflação vem. Há os produtos cotados em dólar, trigo etc, tem a gasolina, que vem com um aumento de uns 40%.

Folha - E se o Lula não for duro, ficar no meio termo?
Barros -
Se fizer um meio termo, meu filho, foi. O Lula tem de ter um economista em que confie, que diga a ele: "Olha aqui, meu filho, você quer ter um mandato ruim de um ano e bom de três ou você quer ter um mandato ruim de quatro?" Essa é a escolha.

Folha - E a esquerda do PT, o funcionalismo e ao MST? E o povo? A renda cai há anos, vai ter inflação mais alta. O povo vai ficar bravo.
Barros
- É, vai ficar bravo.

Folha - E como é que faz?
Barros
- Não sei.

Folha - Pode ter conturbação social? Política?
Barros
- Não acho, não acho. Nisso o PT é competente.

Folha - Consegue controlar seus radicais e suas massas?
Barros -
Vai ser uma decepção. Tem de saber lidar com essa decepção e dizer: "Olha, isso aqui é culpa do Fernando Henrique, não é culpa minha não. Estou fazendo a limpeza aqui para eu poder fazer o meu governo". Não tem escolha. É isso ou... O Sarney foi colocado diante dessa dura opção e não tomou a decisão certa. Acabou o governo dele.

Folha - Mas, enfim, o PT consegue ou não?
Barros -
Acho que sim. O PT, além de competente nisso, é stalinista no sentido de que sabe que ganhou o poder e que quer manter o poder e faz o que for preciso para isso. Se você precisar, durante um ano, ir contra todas as suas promessas, contra as expectativas, ele vão. Mas quem vai ser o economista urubu que vai dizer ao Lula que é preciso fazer isso?

Folha - E a equipe?
Barros -
Trabalhei sete anos no governo, no governo Sarney e no governo do Fernando Henrique. Nesses sete anos deu para ter uma idéia da dinâmica do governo. As lideranças políticas não entendem de economia, em quase qualquer governo e no do PT também. O Lula não entende, o Zé Dirceu não entende. Você precisa ter um grupo de economistas que tenha a confiança da liderança política.

Folha - Quem vai para a Fazenda, na sua opinião. E para o BC? Um ortodoxo?
Barros -
Não sei, eu não consigo aceitar um nome ortodoxo no Banco Central. Não consigo entender como eles convidam e não consigo entender como o convidado aceita, sabendo que a morte dele está programada. Se o presidente da República não estiver comprometido até à medula com isso e não der força para a sua equipe econômica, aí nós entramos noutra alternativa ruim.

Como vai ser a oposição? O que vai fazer o Serra?
Barros -
Muita gente vai sair com o fígado ruim dessa eleição. Pode fazer oposição com o fígado.
Tem mais. Se o PT fizer um bom governo, o tal do projeto Sérgio Motta [ministro das Comunicações de FHC. Dizia que os tucanos ficariam 20 anos no poder" pode ser repetido para o PT, certo? Isso cria um problema político. Mesmo a pessoa sendo patriota e tudo o mais, se o PT der certo eles estão estrepados. Pois se o PT tivesse um pensamento econômico correto e coisa e tal, seria um baita governo. Não está difícil colocar o Brasil de novo no rumo. Não está difícil. Um ano passa rápido. E, depois que passou, ninguém lembra. Agora se não arrumar nesse ano são quatro anos de sofrimento, como foram os cinco anos do Sarney.

Folha - E o José Dirceu? Como mete a colher nisso?
Barros - O Dirceu é bom. Tem outros caras bons lá. Tem gente boa. Politicamente, administrativamente, eles vão bem. Têm uns quadros intermediários nos ministérios, que é tudo petista. Esse pessoal sobe. O problema está na economia e nas relações internacionais, onde eles vão pegar um abacaxi duro de descascar, vão pegar a Alca, o Bush babando.

Folha - O Dirceu não pode ir para a Fazenda?
Barros -
Pode ser bom. Com um grupo de economistas sob as ordens dele. Mas ele correria esse risco?

Folha - Alguém tem de correr o risco.
Barros -
Teria de ser um sujeito forte. O Dirceu é uma opção, não sei se ele tem outro com essa estatura -uma alternativa seria o Palocci. Mas tem político melhor que o José Dirceu hoje, depois que o [Jorge] Bornhausen [presidente do PFL] virou suco? Em termos de cabeça, em termos de organizador de partido, não conheço outro assim. O Dirceu é o Sérgio Motta do Fernando Henrique.



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