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REFORMA POLÍTICA
Estudo do cientista político Carlos Ranulfo mostra que 29% dos deputados trocam de legenda após a eleição
Fim dos nanicos não inibirá troca de partido
João Castilho/Folha Imagem
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O professor de ciência política Carlos Ranulfo F. de Melo, da UFMG, em sua casa em Belo Horizonte |
MAURICIO PULS
DA REDAÇÃO
Uma reforma política que se limite a reduzir o número de partidos no Brasil não vai impedir a
mudança constante dos congressistas eleitos por uma legenda para outras agremiações. Segundo o
cientista político Carlos Ranulfo
Melo, 47, professor da UFMG
(Universidade Federal de Minas
Gerais), a transferência de parlamentares não resulta apenas da
presença dos partidos nanicos, já
que as trocas são freqüentes mesmo entre as legendas grandes e
médias. Enquanto não houver
mecanismos para inibir a migração, a situação não vai melhorar.
Autor do livro "Retirando as
Cadeiras do Lugar - migração
partidária na Câmara dos Deputados (1985-2002)", recém-lançado pela editora UFMG (216 págs.,
R$ 25,00), Ranulfo mostra que,
em média, 29% dos deputados
eleitos mudaram de partido nas
últimas cinco legislaturas.
Amanhã, a CCJ (Comissão de
Constituição e Justiça) da Câmara
dos Deputados deve começar a
votar o projeto de reforma política que prevê, entre outras medidas, a adoção de restrições ao funcionamento dos partidos que obtenham menos de 2% dos votos
válidos no país nas eleições para a
Câmara dos Deputados. A norma
atual (lei nš 9.096, de 19/9/ 1995) é
muito mais rigorosa, pois determina que, a partir da próxima legislatura, só poderão funcionar
no Congresso os partidos que tenham no mínimo 5% dos votos.
Dentre os pontos do projeto que
serão votados pela CCJ, Ranulfo
defende a adoção do voto em lista
fechada: cada eleitor deixaria de
votar em um candidato e passaria
a votar em uma lista de candidatos apresentada pelo partido. Segundo ele, "o sistema de votação
adotado no Brasil, a lista aberta, é
o pior possível", não apenas porque ele personaliza o processo
eleitoral, enfraquecendo a identificação dos eleitores com os partidos, mas sobretudo porque induz
o eleitor a erro: "O eleitorado é incentivado a votar em um determinado candidato sem ter claro que
o seu voto será, na grande maioria
dos casos, transferido no interior
do partido". Ele destaca ainda
que, seja qual for a reforma política aprovada, o novo sistema partidário tende a se estruturar em
torno de dois partidos, PT e
PSDB. Leia a seguir a entrevista:
Folha - Em seu livro, o sr. mostra
que a migração dos parlamentares
para outros partidos começou com
a cisão do PDS ao final do regime
militar e prosseguiu com a divisão
do PMDB no governo José Sarney.
Mas por que essas trocas se tornaram práticas corriqueiras?
Carlos Ranulfo Melo - A crise e
implosão do PMDB -o partido
perdeu mais de cem deputados
entre 1987 e 1989- deu início a
uma reorganização um tanto caótica do sistema partidário que
emergira das eleições de 1982. Ao
mesmo tempo em que novas (e
muitas) legendas foram surgindo,
o trânsito entre as bancadas cresceu. A troca de partidos tornou-se
endêmica porque os deputados
perceberam que se tratava de uma
oportunidade para maximizar
suas chances de sucesso na carreira política a baixo custo: de um lado, não havia, como ainda não há,
qualquer restrição legal à mudança; de outro, os baixos níveis de
identificação partidária indicavam, como ainda indicam, que o
eleitor não prestaria atenção à trajetória partidária ao definir seu
voto. Este segundo ponto, diga-se
de passagem, ajuda a entender
porque apenas 4% dos deputados
eleitos pelo PT desde 1982 trocaram de partido -o eleitorado petista é um recurso por demais precioso para ser deixado para trás.
Com o tempo, um outro ingrediente veio se somar a esse contexto: a troca de legenda passou a
interessar também aos líderes
partidários, visando maior poder
de barganha no interior do Congresso e junto ao Executivo.
Folha - Como o sr. explica o paradoxo de que os mesmos deputados
que exibem um comportamento
disciplinado em plenário, seguindo
as orientações de seus líderes, troquem tanto de partido? Por que a
disciplina no Congresso não se
transforma em coesão partidária?
A migração é muito elevada nas grandes e médias legendas. A diminuição do número de partidos não implicaria um menor trânsito entre bancadas
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Ranulfo - Acredito ser possível
desvendar o paradoxo, desde que
se observe a maneira como as regras do jogo estão definidas na
Câmara. A estrutura de punições
e recompensas embutida no arranjo interno do Legislativo brasileiro permite a coexistência dos
dois comportamentos. Ela sinaliza nas duas direções: disciplina
em plenário e trânsito entre as
bancadas. Ambos são comportamentos racionais e que podem ser
entendidos à luz da noção de que
os deputados optam pelas alternativas de ação capazes de maximizar suas chances de sucesso na
carreira política.
Meu argumento é que o padrão
centralizado de organização do
processo legislativo -com o Poder Executivo, o presidente da
Mesa e o Colégio de Líderes detendo os instrumentos legais para
determinar a
agenda e o ritmo
dos trabalhos da
Câmara- não
apenas incentiva o
deputado a cooperar com o governo nas votações em plenário:
este mesmo arranjo pode também estimulá-lo a
buscar um melhor
posicionamento
junto ao núcleo
decisório do sistema, mudando,
sempre que necessário, de partido. Se votar com o
líder faz parte de
uma estratégia racional de sobrevivência política, buscar um partido melhor posicionado na estrutura de poder da Câmara também
pode fazer.
Folha - Apesar das migrações, o
sr. assinala também que, desde os
anos 90, as elites dos partidos não
têm trocado de legenda -esse fenômeno atinge apenas os deputados menos expressivos. Isso seria
um sintoma de que, a despeito das
dificuldades, o sistema partidário
já adquiriu certa estabilidade?
Ranulfo - De certa forma, sim.
Na década de 80, a migração da
elite congressual era um indicativo de que estava em curso uma
reorganização do sistema partidário. À medida em que avançamos pelos anos 90, um novo quadro partidário começa a se estabilizar, a elite se reacomoda e a migração partidária passa a ser o resultado de estratégias de sobrevivência traçadas, preferencialmente, por aqueles deputados que não
conseguem ter acesso a recursos
de poder no interior da Câmara.
Entre 1991 e 2003, apenas 9,5% da
elite partidária trocou de legenda.
Entre os deputados do chamado
baixo clero o percentual foi de
35,4%. A migração partidária tornou-se um recurso a mais no jogo
entre líderes e liderados na Câmara.
Folha - O sr. observa que os deputados migram para ter maior acesso a recursos disponibilizados pelo
aparelho governamental. Isso explica por que os sucessivos governos desde José Sarney não mostraram interesse em inibir essas migrações -o que, como o sr. argumenta, exigiria apenas uma lei ordinária, uma medida de fácil aprovação?
Ranulfo - De
Sarney a Lula, a
troca de legenda
na Câmara beneficiou o governo
quando o presidente esteve disposto a partilhar
poder com os
partidos de sua
base e/ou manteve bons índices de
popularidade.
Sarney, depois de
1987, e Collor, nos
anos de 1991 e
1992, viram sua
base diminuir em
função da migração. No primeiro
mandato de Fernando Henrique
Cardoso os partidos da base governista, em especial o PFL e o
PSDB, cresceram devido às migrações; mas no período posterior
isso já não aconteceu: em 1999 o
movimento ainda foi favorável ao
governo, mas a partir de meados
de 2000 a base aliada mais perdeu
do que ganhou adeptos na Câmara. Seja como for, é preciso lembrar que: a) nenhum governo,
desde a redemocratização, apresentou uma base suficientemente
coesa para introduzir na agenda a
questão da reforma política no
Brasil, e b) a partir de um certo
momento foram os próprios líderes que passaram a patrocinar, ou
incentivar, o processo migratório.
Folha - O sr. sustenta ainda que
os parlamentares tendem a migrar
para governos com ministérios de
coalizão (nos quais os partidos têm
maior participação nas decisões do
governo) e tendem a se afastar de
governos com ministérios de cooptação (nos quais os partidos têm
pouca participação nas decisões).
Dadas as dificuldades enfrentadas
hoje pelo governo Lula para aprovar seus projetos no Congresso, o sr.
diria que o atual ministério é sobretudo um ministério de cooptação?
O sistema de votação adotado no Brasil é o pior possível porque induz o eleitor a erro... Ele vota no candidato, mas são os partidos que detêm o poder
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Ranulfo - Não. Um ministério de
cooptação caracteriza-se pela ausência de acordo entre o presidente e os partidos. No caso de Lula,
houve acordo. Foram os partidos,
por meio de seus líderes, e não este ou aquele parlamentar individualmente, quem esteve na mesa
de negociação. Como resultado
deste processo, o desempenho do
governo Lula em seu primeiro
ano no Congresso foi muito bom,
apesar de contar com uma coalizão muito mais heterogênea do
que a de Fernando Henrique Cardoso. O que estamos percebendo
hoje é a necessidade de uma repactuação no interior da base governista.
Folha - O sr. acredita que a política econômica ortodoxa conduzida
do governo Lula vem contribuindo
para desagregar a base aliada no
Congresso, do mesmo modo que a
política econômica do ministro Pedro Malan parece ter contribuído
para desagregar a base de apoio de
Fernando Henrique Cardoso em
seu segundo mandato?
Ranulfo - Não. A política econômica do governo Lula é o seu
maior trunfo até agora. Ela muito
mais ajuda do que atrapalha a
manutenção da base. Ela cria, é
certo, tensões à esquerda, e em especial no interior do PT, mas não
é isso o que anda atrapalhando as
votações no Congresso.
Folha - Se a lei 9.096/95 já estivesse plenamente
em vigor, apenas 7
partidos (PT, PSDB,
PFL, PMDB, PP,
PSB e PDT) teriam
obtido os 5% de
votos necessários
para funcionar no
Congresso. Se o
projeto que reduz
esse percentual
para 2% for aprovado, outros seis
partidos podem
ser salvos (PTB, PL,
PPS, PC do B e Prona). De todo modo,
pelo menos 14 legendas estão condenadas a desaparecer. Essa centralização, por si só, pode inibir a migração dos deputados?
Ranulfo - Não acredito. É verdade que deputados eleitos pelos
micropartidos situados à direita
do espectro político geralmente
abandonam sua legenda de origem. Mas a migração é também
muito elevada nas grandes e médias legendas: PP, PTB, PDT, PSB,
PFL e PMDB perderam, entre
1985 e 2002, 43%, 37,8%, 31,3%,
27,5%, 23% e 22,7%, respectivamente, dos deputados eleitos.
Uma diminuição do número de
partidos não implicaria uma redução no trânsito entre as bancadas. O fato é que nem os líderes
partidários possuem instrumentos para impedir o abandono da
legenda por parte de um deputado e tampouco o eleitor, ressalva
feita à parcela do eleitorado de esquerda, presta muita atenção ao
fato. Enquanto não houver alteração num destes fatores, a migração partidária tende a continuar.
Folha - Como o sr. avalia o atual
projeto de reforma política em discussão na Câmara, que prevê a
adoção das listas fechadas, do financiamento público de campanhas, entre outros pontos?
Ranulfo - Defendo a manutenção do regime presidencialista e
do sistema de representação proporcional no Brasil. Portanto, sou
adepto de uma agenda minimalista de reforma política. As reformas em discussão no Congresso
-além das que você citou, vale
lembrar o fim das coligações nas
eleições proporcionais e adoção
de mecanismos que procurem
restringir a troca de partidos-
apontam no sentido de corrigir
distorções no atual sistema, tornando-o mais representativo e inteligível para o eleitor. Não é possível analisar aqui todas as questões, mas me parece que o ponto
de maior impacto sobre o sistema
político nacional seria a adoção
da lista fechada nas eleições para o
Legislativo. O sistema de votação
adotado no Brasil, a lista aberta, é
o pior possível. E não apenas porque contribui decisivamente para
uma excessiva personalização do
processo eleitoral, deixando os
partidos em segundo plano. Mas
também por ele induzir o eleitor a
erro. O eleitorado é incentivado a
votar em um determinado candidato sem ter claro que o seu voto
será, na grande maioria dos casos,
transferido no interior do partido
(ou o que é pior, da coligação).
Não é razoável supor que o eleitor
que votou em um certo indivíduo
sinta-se representado por outro
indivíduo se este mesmo eleitor
não opera dentro de uma lógica
partidária. Mais ainda, é preciso
considerar que o cidadão, ao votar no candidato e não no partido,
pensa estar fazendo do primeiro o
seu agente na Câmara. Acontece
que, computados os votos, proclamados os eleitos e tendo início
o período legislativo, são os partidos, e não os indivíduos, que detêm poder de agenda e veto. O cidadão, incentivado pelo sistema
eleitoral, escolheu o agente errado. Escolheu um representante
que não possui, enquanto indivíduo, capacidade de interferência
no processo decisório.
Folha - O que é possível esperar
do sistema partidário a partir da
próxima legislatura (2007-2011)?
Ranulfo - Seja qual for o sucesso
das propostas de reforma política,
me parece que o sistema partidário brasileiro está definindo seu
perfil a partir das eleições presidenciais. Não é porque foram
bem nas eleições municipais de
2004 que PSDB e PT devem polarizar a disputa presidencial em
2006. O que há de comum entre
esses dois partidos é o fato de que
ambos têm tido capacidade de
apresentar candidatos à Presidência desde 1989 e
vêm se credenciando neste processo. É em torno
deste dois partidos que o sistema
partidário tende a
se estruturar. Por
outro lado, as três
legendas mais
fortes na década
de 80 -PP,
PMDB e PFL-
nunca conseguiram apresentar
alternativas no
plano da disputa
nacional e foram
ultrapassadas. A
situação é particularmente crítica
nos dois primeiros casos e não
acredito que seja possível reverter
a curva eleitoral descendente verificada desde 1990. Quanto ao PFL,
se não conseguir se apresentar
com um perfil próprio no plano
da disputa presidencial, terá que
se contentar com o papel de partido satélite do PSDB.
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