São Paulo, segunda-feira, 29 de novembro de 2004

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REFORMA POLÍTICA

Estudo do cientista político Carlos Ranulfo mostra que 29% dos deputados trocam de legenda após a eleição

Fim dos nanicos não inibirá troca de partido

João Castilho/Folha Imagem
O professor de ciência política Carlos Ranulfo F. de Melo, da UFMG, em sua casa em Belo Horizonte


MAURICIO PULS
DA REDAÇÃO

Uma reforma política que se limite a reduzir o número de partidos no Brasil não vai impedir a mudança constante dos congressistas eleitos por uma legenda para outras agremiações. Segundo o cientista político Carlos Ranulfo Melo, 47, professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), a transferência de parlamentares não resulta apenas da presença dos partidos nanicos, já que as trocas são freqüentes mesmo entre as legendas grandes e médias. Enquanto não houver mecanismos para inibir a migração, a situação não vai melhorar.
Autor do livro "Retirando as Cadeiras do Lugar - migração partidária na Câmara dos Deputados (1985-2002)", recém-lançado pela editora UFMG (216 págs., R$ 25,00), Ranulfo mostra que, em média, 29% dos deputados eleitos mudaram de partido nas últimas cinco legislaturas.
Amanhã, a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara dos Deputados deve começar a votar o projeto de reforma política que prevê, entre outras medidas, a adoção de restrições ao funcionamento dos partidos que obtenham menos de 2% dos votos válidos no país nas eleições para a Câmara dos Deputados. A norma atual (lei nš 9.096, de 19/9/ 1995) é muito mais rigorosa, pois determina que, a partir da próxima legislatura, só poderão funcionar no Congresso os partidos que tenham no mínimo 5% dos votos.
Dentre os pontos do projeto que serão votados pela CCJ, Ranulfo defende a adoção do voto em lista fechada: cada eleitor deixaria de votar em um candidato e passaria a votar em uma lista de candidatos apresentada pelo partido. Segundo ele, "o sistema de votação adotado no Brasil, a lista aberta, é o pior possível", não apenas porque ele personaliza o processo eleitoral, enfraquecendo a identificação dos eleitores com os partidos, mas sobretudo porque induz o eleitor a erro: "O eleitorado é incentivado a votar em um determinado candidato sem ter claro que o seu voto será, na grande maioria dos casos, transferido no interior do partido". Ele destaca ainda que, seja qual for a reforma política aprovada, o novo sistema partidário tende a se estruturar em torno de dois partidos, PT e PSDB. Leia a seguir a entrevista:
 

Folha - Em seu livro, o sr. mostra que a migração dos parlamentares para outros partidos começou com a cisão do PDS ao final do regime militar e prosseguiu com a divisão do PMDB no governo José Sarney. Mas por que essas trocas se tornaram práticas corriqueiras?
Carlos Ranulfo Melo -
A crise e implosão do PMDB -o partido perdeu mais de cem deputados entre 1987 e 1989- deu início a uma reorganização um tanto caótica do sistema partidário que emergira das eleições de 1982. Ao mesmo tempo em que novas (e muitas) legendas foram surgindo, o trânsito entre as bancadas cresceu. A troca de partidos tornou-se endêmica porque os deputados perceberam que se tratava de uma oportunidade para maximizar suas chances de sucesso na carreira política a baixo custo: de um lado, não havia, como ainda não há, qualquer restrição legal à mudança; de outro, os baixos níveis de identificação partidária indicavam, como ainda indicam, que o eleitor não prestaria atenção à trajetória partidária ao definir seu voto. Este segundo ponto, diga-se de passagem, ajuda a entender porque apenas 4% dos deputados eleitos pelo PT desde 1982 trocaram de partido -o eleitorado petista é um recurso por demais precioso para ser deixado para trás. Com o tempo, um outro ingrediente veio se somar a esse contexto: a troca de legenda passou a interessar também aos líderes partidários, visando maior poder de barganha no interior do Congresso e junto ao Executivo.

Folha - Como o sr. explica o paradoxo de que os mesmos deputados que exibem um comportamento disciplinado em plenário, seguindo as orientações de seus líderes, troquem tanto de partido? Por que a disciplina no Congresso não se transforma em coesão partidária?


A migração é muito elevada nas grandes e médias legendas. A diminuição do número de partidos não implicaria um menor trânsito entre bancadas

Ranulfo -
Acredito ser possível desvendar o paradoxo, desde que se observe a maneira como as regras do jogo estão definidas na Câmara. A estrutura de punições e recompensas embutida no arranjo interno do Legislativo brasileiro permite a coexistência dos dois comportamentos. Ela sinaliza nas duas direções: disciplina em plenário e trânsito entre as bancadas. Ambos são comportamentos racionais e que podem ser entendidos à luz da noção de que os deputados optam pelas alternativas de ação capazes de maximizar suas chances de sucesso na carreira política.
Meu argumento é que o padrão centralizado de organização do processo legislativo -com o Poder Executivo, o presidente da Mesa e o Colégio de Líderes detendo os instrumentos legais para determinar a agenda e o ritmo dos trabalhos da Câmara- não apenas incentiva o deputado a cooperar com o governo nas votações em plenário: este mesmo arranjo pode também estimulá-lo a buscar um melhor posicionamento junto ao núcleo decisório do sistema, mudando, sempre que necessário, de partido. Se votar com o líder faz parte de uma estratégia racional de sobrevivência política, buscar um partido melhor posicionado na estrutura de poder da Câmara também pode fazer.

Folha - Apesar das migrações, o sr. assinala também que, desde os anos 90, as elites dos partidos não têm trocado de legenda -esse fenômeno atinge apenas os deputados menos expressivos. Isso seria um sintoma de que, a despeito das dificuldades, o sistema partidário já adquiriu certa estabilidade?
Ranulfo -
De certa forma, sim. Na década de 80, a migração da elite congressual era um indicativo de que estava em curso uma reorganização do sistema partidário. À medida em que avançamos pelos anos 90, um novo quadro partidário começa a se estabilizar, a elite se reacomoda e a migração partidária passa a ser o resultado de estratégias de sobrevivência traçadas, preferencialmente, por aqueles deputados que não conseguem ter acesso a recursos de poder no interior da Câmara. Entre 1991 e 2003, apenas 9,5% da elite partidária trocou de legenda. Entre os deputados do chamado baixo clero o percentual foi de 35,4%. A migração partidária tornou-se um recurso a mais no jogo entre líderes e liderados na Câmara.

Folha - O sr. observa que os deputados migram para ter maior acesso a recursos disponibilizados pelo aparelho governamental. Isso explica por que os sucessivos governos desde José Sarney não mostraram interesse em inibir essas migrações -o que, como o sr. argumenta, exigiria apenas uma lei ordinária, uma medida de fácil aprovação?
Ranulfo -
De Sarney a Lula, a troca de legenda na Câmara beneficiou o governo quando o presidente esteve disposto a partilhar poder com os partidos de sua base e/ou manteve bons índices de popularidade. Sarney, depois de 1987, e Collor, nos anos de 1991 e 1992, viram sua base diminuir em função da migração. No primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso os partidos da base governista, em especial o PFL e o PSDB, cresceram devido às migrações; mas no período posterior isso já não aconteceu: em 1999 o movimento ainda foi favorável ao governo, mas a partir de meados de 2000 a base aliada mais perdeu do que ganhou adeptos na Câmara. Seja como for, é preciso lembrar que: a) nenhum governo, desde a redemocratização, apresentou uma base suficientemente coesa para introduzir na agenda a questão da reforma política no Brasil, e b) a partir de um certo momento foram os próprios líderes que passaram a patrocinar, ou incentivar, o processo migratório.

Folha - O sr. sustenta ainda que os parlamentares tendem a migrar para governos com ministérios de coalizão (nos quais os partidos têm maior participação nas decisões do governo) e tendem a se afastar de governos com ministérios de cooptação (nos quais os partidos têm pouca participação nas decisões). Dadas as dificuldades enfrentadas hoje pelo governo Lula para aprovar seus projetos no Congresso, o sr. diria que o atual ministério é sobretudo um ministério de cooptação?


O sistema de votação adotado no Brasil é o pior possível porque induz o eleitor a erro... Ele vota no candidato, mas são os partidos que detêm o poder

Ranulfo -
Não. Um ministério de cooptação caracteriza-se pela ausência de acordo entre o presidente e os partidos. No caso de Lula, houve acordo. Foram os partidos, por meio de seus líderes, e não este ou aquele parlamentar individualmente, quem esteve na mesa de negociação. Como resultado deste processo, o desempenho do governo Lula em seu primeiro ano no Congresso foi muito bom, apesar de contar com uma coalizão muito mais heterogênea do que a de Fernando Henrique Cardoso. O que estamos percebendo hoje é a necessidade de uma repactuação no interior da base governista.

Folha - O sr. acredita que a política econômica ortodoxa conduzida do governo Lula vem contribuindo para desagregar a base aliada no Congresso, do mesmo modo que a política econômica do ministro Pedro Malan parece ter contribuído para desagregar a base de apoio de Fernando Henrique Cardoso em seu segundo mandato?
Ranulfo -
Não. A política econômica do governo Lula é o seu maior trunfo até agora. Ela muito mais ajuda do que atrapalha a manutenção da base. Ela cria, é certo, tensões à esquerda, e em especial no interior do PT, mas não é isso o que anda atrapalhando as votações no Congresso.

Folha - Se a lei 9.096/95 já estivesse plenamente em vigor, apenas 7 partidos (PT, PSDB, PFL, PMDB, PP, PSB e PDT) teriam obtido os 5% de votos necessários para funcionar no Congresso. Se o projeto que reduz esse percentual para 2% for aprovado, outros seis partidos podem ser salvos (PTB, PL, PPS, PC do B e Prona). De todo modo, pelo menos 14 legendas estão condenadas a desaparecer. Essa centralização, por si só, pode inibir a migração dos deputados?
Ranulfo -
Não acredito. É verdade que deputados eleitos pelos micropartidos situados à direita do espectro político geralmente abandonam sua legenda de origem. Mas a migração é também muito elevada nas grandes e médias legendas: PP, PTB, PDT, PSB, PFL e PMDB perderam, entre 1985 e 2002, 43%, 37,8%, 31,3%, 27,5%, 23% e 22,7%, respectivamente, dos deputados eleitos. Uma diminuição do número de partidos não implicaria uma redução no trânsito entre as bancadas. O fato é que nem os líderes partidários possuem instrumentos para impedir o abandono da legenda por parte de um deputado e tampouco o eleitor, ressalva feita à parcela do eleitorado de esquerda, presta muita atenção ao fato. Enquanto não houver alteração num destes fatores, a migração partidária tende a continuar.

Folha - Como o sr. avalia o atual projeto de reforma política em discussão na Câmara, que prevê a adoção das listas fechadas, do financiamento público de campanhas, entre outros pontos?
Ranulfo -
Defendo a manutenção do regime presidencialista e do sistema de representação proporcional no Brasil. Portanto, sou adepto de uma agenda minimalista de reforma política. As reformas em discussão no Congresso -além das que você citou, vale lembrar o fim das coligações nas eleições proporcionais e adoção de mecanismos que procurem restringir a troca de partidos- apontam no sentido de corrigir distorções no atual sistema, tornando-o mais representativo e inteligível para o eleitor. Não é possível analisar aqui todas as questões, mas me parece que o ponto de maior impacto sobre o sistema político nacional seria a adoção da lista fechada nas eleições para o Legislativo. O sistema de votação adotado no Brasil, a lista aberta, é o pior possível. E não apenas porque contribui decisivamente para uma excessiva personalização do processo eleitoral, deixando os partidos em segundo plano. Mas também por ele induzir o eleitor a erro. O eleitorado é incentivado a votar em um determinado candidato sem ter claro que o seu voto será, na grande maioria dos casos, transferido no interior do partido (ou o que é pior, da coligação). Não é razoável supor que o eleitor que votou em um certo indivíduo sinta-se representado por outro indivíduo se este mesmo eleitor não opera dentro de uma lógica partidária. Mais ainda, é preciso considerar que o cidadão, ao votar no candidato e não no partido, pensa estar fazendo do primeiro o seu agente na Câmara. Acontece que, computados os votos, proclamados os eleitos e tendo início o período legislativo, são os partidos, e não os indivíduos, que detêm poder de agenda e veto. O cidadão, incentivado pelo sistema eleitoral, escolheu o agente errado. Escolheu um representante que não possui, enquanto indivíduo, capacidade de interferência no processo decisório.

Folha - O que é possível esperar do sistema partidário a partir da próxima legislatura (2007-2011)?
Ranulfo -
Seja qual for o sucesso das propostas de reforma política, me parece que o sistema partidário brasileiro está definindo seu perfil a partir das eleições presidenciais. Não é porque foram bem nas eleições municipais de 2004 que PSDB e PT devem polarizar a disputa presidencial em 2006. O que há de comum entre esses dois partidos é o fato de que ambos têm tido capacidade de apresentar candidatos à Presidência desde 1989 e vêm se credenciando neste processo. É em torno deste dois partidos que o sistema partidário tende a se estruturar. Por outro lado, as três legendas mais fortes na década de 80 -PP, PMDB e PFL- nunca conseguiram apresentar alternativas no plano da disputa nacional e foram ultrapassadas. A situação é particularmente crítica nos dois primeiros casos e não acredito que seja possível reverter a curva eleitoral descendente verificada desde 1990. Quanto ao PFL, se não conseguir se apresentar com um perfil próprio no plano da disputa presidencial, terá que se contentar com o papel de partido satélite do PSDB.


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