|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
QUATRO ANOS DE LULA
Continuísmo superou o medo e a esperança
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
COMO SEMPRE acontece, as previsões não se
confirmaram. Quando
Lula tomou posse em 2003, era
sensato imaginar que seu governo seria marcado por algum
grau de experimentalismo e
turbulência na economia, por
ocasionais manifestações de
teimosia doutrinária e, sobretudo, por elevados padrões de
ética na condução dos negócios
do Estado.
Lula foi eleito com promessas de mais decência e mais desenvolvimento. Seu governo
obteve duas coisas diferentes, e
não menos importantes: moeda estável e aumento da inclusão social. Foi, em resumo, um
aperfeiçoamento do governo
Fernando Henrique Cardoso
-daí, provavelmente, a raiva
que despertou tanto entre alguns setores de esquerda quanto entre os próprios fernandohenriquistas.
Estes não se conformaram
em ver um sapo barbudo e despreparado conduzindo a economia do mesmo modo que seu
príncipe de bela plumagem; as
gafes de um competiram com
os despautérios de outro, mas
delicados carpaccios de salmão
deram lugar a rudes churrascadas.
Afora as diferenças de estilo e
de gramática, a continuidade
administrativa superou tanto o
medo quanto a esperança. De
todo modo, em matéria de domínio da norma culta, Fernando Henrique não é o melhor
que as "elites brancas" são capazes de oferecer: Michel Temer e Ciro Gomes superam-no
de longe neste quesito.
Menos preconceituoso do
que aqueles a quem beneficiou,
Lula tratou ricos e pobres com
igual carinho. Quem vivia de
rendas no governo FHC não teve do que se queixar sob a Presidência petista; os lucros dos
bancos e da indústria atingiram
recordes históricos. Ao mesmo
tempo, os índices de concentração de renda diminuíram, o
salário real aumentou, e o emprego cresceu, não tanto quanto o prometido, mas ainda assim de forma significativa.
Lulismo
Desse "melhor dos mundos
possíveis", construído sobre os
escombros da utopia, surgiu o
lulismo: índices de popularidade inabaláveis, blindados contra qualquer escândalo, uma vitória eleitoral humilhante para
a oposição e mesmo uma notícia histórica: pela primeira vez
em 50 anos, Juscelino e Getúlio
deixam de ser considerados pela maioria da população os
maiores presidentes que o Brasil já teve.
O triunfo existencial e pessoal suscitou em Lula compreensíveis, perigosos e às vezes ridículos surtos de megalomania. Mas, sob o mote do
"nunca antes neste país" e sob a
aparente revolução de se ter
um operário na Presidência, o
que se viu foi o agravamento do
que há de mais regressivo na
política brasileira.
O aparelhamento do Estado
pelos apaniguados, garantindo
um exercício do poder que se
caracteriza pela improvisação e
pela barganha fisiológica, não
são novidade no país. Tampouco o são as tentativas de controlar a imprensa, desqualificar a
oposição, rasgar compromissos
e programas, infantilizar o eleitorado, fazer-se de vítima
quando apanhado em qualquer
deslize e fazer-se de iluminado
enquanto age nas sombras. Novidade é que isso tenha sido feito a partir de uma história partidária que privilegiava a crítica
ao autoritarismo, a organização
"de baixo para cima" e a autonomia da sociedade civil.
O abandono de qualquer
perspectiva radicalmente democrática, ou mesmo radicalmente republicana, conheceu
duas fases distintas no governo
Lula. Na primeira, conduzida
de modo truculento e ineficaz
por José Dirceu, o projeto consistia em dobrar a espinha dos
partidos aliados, concentrando
na alta burocracia petista o
controle das benesses que seriam distribuídas a cada membro da arraia-miúda do Congresso.
Roberto Jefferson só denunciou o mensalão porque o domínio das verbas e dos cargos
por José Dirceu ameaçava o poder dele próprio sobre seus liderados. Desrespeitar o poder
da cúpula dos partidos fisiológicos foi a fatal "quebra de hierarquia" que determinou a segunda cassação da vida de José
Dirceu.
Na crise resultante, esfacelou-se qualquer arremedo de
organização partidária no país;
a desmoralização cabal do PT,
partido a que só restaram os recursos stalinistas do patrulhamento, do combate à liberdade
de imprensa e do velho culto à
personalidade do chefe, terminou repondo o sistema político
brasileiro no lugar de que nunca saiu: tudo se resume a um
presidente que faz e desfaz,
mesmo quando não faz nada,
no melhor estilo getulista.
Com uma desvantagem histórica de imensas proporções.
O antigo populismo se consolidava num período de arrancada
econômica em que o Estado tinha papel decisivo no planejamento e na condução das obras
de infra-estrutura. Os "gargalos" para o desenvolvimento
brasileiro ressurgem numa situação de notória incapacidade
do poder público para atender
às demandas mais variadas, da
segurança pública à energia
elétrica, do financiamento agrícola ao tráfego aéreo.
Presidência forte, num Estado próximo do colapso; crescimento econômico baixo, com
demandas sociais atendidas
precariamente; providencialismo sem programa, numa sociedade civil em pandarecos. Essa
"herança maldita" não vem de
agora, mas é a que Lula recebe
agravada no segundo mandato;
ele parece estar contente, todavia, com o conjunto da obra.
Texto Anterior: Depois da posse, Lula tira dez dias de férias e José Alencar assume Próximo Texto: Aldo e Chinaglia disputam apoio do PMDB Índice
|