São Paulo, sexta-feira, 29 de dezembro de 2006

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QUATRO ANOS DE LULA

Continuísmo superou o medo e a esperança

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

COMO SEMPRE acontece, as previsões não se confirmaram. Quando Lula tomou posse em 2003, era sensato imaginar que seu governo seria marcado por algum grau de experimentalismo e turbulência na economia, por ocasionais manifestações de teimosia doutrinária e, sobretudo, por elevados padrões de ética na condução dos negócios do Estado.
Lula foi eleito com promessas de mais decência e mais desenvolvimento. Seu governo obteve duas coisas diferentes, e não menos importantes: moeda estável e aumento da inclusão social. Foi, em resumo, um aperfeiçoamento do governo Fernando Henrique Cardoso -daí, provavelmente, a raiva que despertou tanto entre alguns setores de esquerda quanto entre os próprios fernandohenriquistas.
Estes não se conformaram em ver um sapo barbudo e despreparado conduzindo a economia do mesmo modo que seu príncipe de bela plumagem; as gafes de um competiram com os despautérios de outro, mas delicados carpaccios de salmão deram lugar a rudes churrascadas.
Afora as diferenças de estilo e de gramática, a continuidade administrativa superou tanto o medo quanto a esperança. De todo modo, em matéria de domínio da norma culta, Fernando Henrique não é o melhor que as "elites brancas" são capazes de oferecer: Michel Temer e Ciro Gomes superam-no de longe neste quesito.
Menos preconceituoso do que aqueles a quem beneficiou, Lula tratou ricos e pobres com igual carinho. Quem vivia de rendas no governo FHC não teve do que se queixar sob a Presidência petista; os lucros dos bancos e da indústria atingiram recordes históricos. Ao mesmo tempo, os índices de concentração de renda diminuíram, o salário real aumentou, e o emprego cresceu, não tanto quanto o prometido, mas ainda assim de forma significativa.

Lulismo
Desse "melhor dos mundos possíveis", construído sobre os escombros da utopia, surgiu o lulismo: índices de popularidade inabaláveis, blindados contra qualquer escândalo, uma vitória eleitoral humilhante para a oposição e mesmo uma notícia histórica: pela primeira vez em 50 anos, Juscelino e Getúlio deixam de ser considerados pela maioria da população os maiores presidentes que o Brasil já teve.
O triunfo existencial e pessoal suscitou em Lula compreensíveis, perigosos e às vezes ridículos surtos de megalomania. Mas, sob o mote do "nunca antes neste país" e sob a aparente revolução de se ter um operário na Presidência, o que se viu foi o agravamento do que há de mais regressivo na política brasileira.
O aparelhamento do Estado pelos apaniguados, garantindo um exercício do poder que se caracteriza pela improvisação e pela barganha fisiológica, não são novidade no país. Tampouco o são as tentativas de controlar a imprensa, desqualificar a oposição, rasgar compromissos e programas, infantilizar o eleitorado, fazer-se de vítima quando apanhado em qualquer deslize e fazer-se de iluminado enquanto age nas sombras. Novidade é que isso tenha sido feito a partir de uma história partidária que privilegiava a crítica ao autoritarismo, a organização "de baixo para cima" e a autonomia da sociedade civil.
O abandono de qualquer perspectiva radicalmente democrática, ou mesmo radicalmente republicana, conheceu duas fases distintas no governo Lula. Na primeira, conduzida de modo truculento e ineficaz por José Dirceu, o projeto consistia em dobrar a espinha dos partidos aliados, concentrando na alta burocracia petista o controle das benesses que seriam distribuídas a cada membro da arraia-miúda do Congresso.
Roberto Jefferson só denunciou o mensalão porque o domínio das verbas e dos cargos por José Dirceu ameaçava o poder dele próprio sobre seus liderados. Desrespeitar o poder da cúpula dos partidos fisiológicos foi a fatal "quebra de hierarquia" que determinou a segunda cassação da vida de José Dirceu.
Na crise resultante, esfacelou-se qualquer arremedo de organização partidária no país; a desmoralização cabal do PT, partido a que só restaram os recursos stalinistas do patrulhamento, do combate à liberdade de imprensa e do velho culto à personalidade do chefe, terminou repondo o sistema político brasileiro no lugar de que nunca saiu: tudo se resume a um presidente que faz e desfaz, mesmo quando não faz nada, no melhor estilo getulista.
Com uma desvantagem histórica de imensas proporções. O antigo populismo se consolidava num período de arrancada econômica em que o Estado tinha papel decisivo no planejamento e na condução das obras de infra-estrutura. Os "gargalos" para o desenvolvimento brasileiro ressurgem numa situação de notória incapacidade do poder público para atender às demandas mais variadas, da segurança pública à energia elétrica, do financiamento agrícola ao tráfego aéreo.
Presidência forte, num Estado próximo do colapso; crescimento econômico baixo, com demandas sociais atendidas precariamente; providencialismo sem programa, numa sociedade civil em pandarecos. Essa "herança maldita" não vem de agora, mas é a que Lula recebe agravada no segundo mandato; ele parece estar contente, todavia, com o conjunto da obra.


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