São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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Escritor português critica utopia e pede revisão conceitual da esquerda

LÉO GERCHMANN
DA AGÊNCIA FOLHA, EM PORTO ALEGRE

ANA FLOR
ENVIADA ESPECIAL A PORTO ALEGRE

Em um painel no qual o secretário-geral da Presidência, Luiz Dulci, foi intensamente vaiado, apesar de receber alguns aplausos, o escritor português José Saramago rebateu seu depoimento e disse: ""Tenho uma má notícia, depois de ter escutado nossos amigos aqui: não sou utopista".
Saramago ganhou a palavra logo depois de Dulci falar sobre utopia ontem para 5.000 pessoas no auditório Araújo Vianna, em Porto Alegre, no Fórum Social Mundial. Em referências indiretas a políticos e governos em geral, Saramago definiu a política como ""a arte de não dizer a verdade".
""Para 5 bilhões de pessoas que vivem na pobreza, a palavra utopia não significa absolutamente nada", disse. ""O discurso sobre a utopia é o discurso sobre o não existente. Vivemos hoje de utopia como por muito tempo vivemos de mitos e crenças, que não têm nada para dar, mas muito para prometer."
Em uma crítica à esquerda em geral, o escritor português afirmou: ""Nós, a esquerda, o primeiro conceito que temos de rever é o conceito de esquerda." Falando sobre o uso das palavras, Saramago, Nobel de literatura, chegou a relativisar até mesmo a expressão ""democracia".
""A democracia que vivemos é seqüestrada, amputada. O poder do cidadão se limita a tirar um governo que não gosta e colocar um que não sabe se vai gostar", disse, lembrando que o Banco Mundial e o FMI (Fundo Monetário Internacional), que determinam o futuro de economias, não têm seus integrantes eleitos pelo povo.
Dulci afirmou que ""para todos nós há erro, o essencial é não esquecer onde está a linha do horizonte". De acordo com o secretário-geral da Presidência, ""na caminhada descobrimos notícias novas sobre nós mesmos".
O escritor Eduardo Galeano, que também participou do painel ""Quixote hoje: utopia e política", afirmou: ""Cervantes [autor de Dom Quixote] estava preso por dívidas como nós estamos presos por dívidas na América Latina."
O diretor do jornal francês "Le Monde Diplomatique", Ignacio Ramonet, afirmou que "a globalização criou um mundo mais insolidário". "Uma vaca européia ganha US$ 4 por dia de subvenção, enquanto um terço da população mundial vive com US$ 1 por dia", disse ele.
Na sua última intervenção, Galeano afirmou, ainda, que a utopia fica sempre distante de quem a tenta atingir e que essa pessoa continua caminhando atrás dela, e ela se distanciando. Concluiu, então: o segredo está em continuar caminhando.
Saramago, em sua linha de discursar contra a palavra "utopia", disse ainda que, para quem passa fome, ela é inútil, e, avisando que cunharia uma "frase histórica", afirmou: "O que transformou o mundo não foi a utopia, foi a necessidade".


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