São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TERRA SEM LEI
16 pistoleiros permanecem sem punição no Estado, e 29 acusados de assassinar sindicalistas estão foragidos
Matadores de aluguel agem impunes no Pará


RUBENS VALENTE
ENVIADO ESPECIAL A MARABÁ

Na penitenciária de Marabá, a 438 km de Belém, o detento Ademar Ribeiro de Souza, 40, líder de um assentamento rural em Tucuruí (PA), é um retrato das contradições da Justiça nas regiões sul e sudeste do Pará, onde 16 assassinatos de sindicalistas permanecem sem punição para os mandantes e pelo menos 29 acusados de pistolagem são foragidos.
Meses após sofrer um atentado com cinco tiros, Souza foi intimado pela Justiça Federal a depor em outro processo, sob acusação de cárcere privado de funcionários do Incra. Ele disse ao oficial de Justiça que, para comparecer à audiência, só poderia sair da sua casa sob proteção policial, o que lhe valeu uma acusação de "obstrução à Justiça", sendo depois detido e levado ao presídio. Essa prisão foi revogada no final de 2004, mas Souza é mantido preso pela acusação de cárcere privado.
Os três homens que tentaram matar Souza em 2003 até agora não foram identificados, mas o ativista e dissidente do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) há sete meses cumpre a decisão judicial ao lado de traficantes, homicidas e de dois acusados de matar sindicalistas.
Durante a entrevista concedida à Folha, Souza, que tem uma bala alojada nas costas, permaneceu algemado. Ele entregou uma carta na qual lê-se: "Tudo o que fiz foi só ajudar as pessoas a buscarem um meio de sobrevivência".
Na outra ponta, os assassinatos de sindicalistas, seus parentes e advogados cometidos no sul e no sudeste Pará ao longo de duas décadas têm um ponto em comum: em nenhum deles há um mandante cumprindo pena na cadeia.
Nessas regiões onde 10 mil famílias de trabalhadores rurais sem terra acampadas em barracos de lona vivem escaramuças com fazendeiros e seus funcionários, a Justiça que deteve Souza não alcança dezenas de acusados de crimes de pistolagem. A CPT (Comissão Pastoral da Terra) defende a criação de uma força-tarefa da Polícia Federal para localizar e prender os acusados.
Um levantamento da CPT (Comissão Pastoral da Terra) sobre a impunidade deverá ser entregue na próxima quarta-feira ao secretário nacional de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, que estará na região para ouvir as denúncias de violência no campo. Os 29 pistoleiros foragidos são acusados pelas mortes de 36 pessoas que se envolveram direta ou indiretamente em conflitos agrários.
"Se deixar a cargo da Polícia Civil do Pará, a impunidade é de 100%", diz o advogado da CPT José Batista Gonçalves Afonso, 40.
Os delegados da Polícia Civil que respondem pelas superintendências das duas regiões, com cerca de 1 milhão de habitantes em 36 cidades, apóiam a idéia da força-tarefa e chegam a sugerir o apoio do serviço de inteligência do Exército (veja texto à pág. 13).
De todos os 16 casos de ataques à organização sindical, há hoje apenas dois acusados de praticarem a execução atrás de grades: um foi preso pelos familiares da própria vítima e o outro foi "detido" pelo próprio morto.
Mesmo ferido no coração, o sindicalista conseguiu empurrar o atirador para um buraco, do qual não conseguiu sair e foi preso.

Infiltrado
Na lista da impunidade há crimes em que o acusado teria usado ardis para matar crianças e mulheres. Orlando Dias da Silva, de 34 anos, filiou-se ao sindicato dos trabalhadores rurais de Marabá como se fosse um simples lavrador atrás de terra.
As investigações da Polícia Civil indicaram que Orlando, de Boa Esperança (ES), na verdade infiltrou-se no sindicato 39 dias antes do crime para obter informações sobre a rotina do presidente da entidade, José Pinheiro Lima, o Dedé, 62. Logo após o crime, ele desapareceu da cidade, dizendo aos que perguntaram por que estava indo embora que não tinha mais interesse em ser assentado. Sua prisão preventiva foi decretada em 02 de agosto de 2001 e até hoje permanece descumprida.
Com a rotina do sindicalista em mãos, os matadores destroçaram a família Lima. No cair da tarde do dia 9 de julho de 2001, aqueles que a polícia identificou como "Paulo Gordo" e "João do Paulo" invadiram a casa do sindicalista já de armas em punho. Encontraram sua mulher, Cleonice Campos Lima, 54, assistindo a uma novela na TV. Foi morta com um tiro na cabeça, ainda sentada.
O sindicalista estava deitado em seu quarto quando os assassinos chegaram. Recebeu um tiro também na cabeça e morreu sem esboçar nenhuma reação.
Os assassinos já deixavam a casa quando deram de cara com um dos filhos do casal, Samuel, 15. O garoto, que jogava bola numa rua próxima, ouviu os tiros e correu para sua casa para ver o que ocorria. Levou um tiro no coração.
O crime tinha todas as chances de permanecer insolúvel, como tantos outros na região, não fosse a tenacidade de um dos filhos de Lima, Edinaldo Lima, 25, que ajudou a prender um dos acusados.
Os pistoleiros, que antes da chacina chegaram a tomar café na casa de uma amiga de Lima, tinham a frieza típica nesses crimes, que custam até R$ 2.000. Esse foi o valor prometido ao matador de José Dutra da Costa, 43, o Dezinho, maranhense de 43 anos que chegou ao Pará em 84 com dois filhos e fundou o sindicato dos trabalhadores rurais de Rondon do Pará.
Costa estava na casa de uma vizinha quando Wellington de Jesus Silva, então com 20 anos, procurou-o, alegando querer resolver a aposentadoria rural de sua avó. A família mandou chamar Costa no vizinho. Durante a conversa, Silva tentou sacar um revólver, mas Dezinho percebeu e reagiu.
O sindicalista, descrito no laudo da necropsia como "baixo e obeso", conseguiu agarrar-se ao pistoleiro e derrubou-o ao chão. Enquanto Costa tentava desarmá-lo, o pistoleiro disparou três vezes. Um tiro foi fatal. O sindicalista mesmo assim desabou abraçado ao seu algoz num buraco de dois metros de profundidade.
Alarmados pelos tiros, vizinhos cercaram o buraco, mas Silva ainda escapou. Foi alcançado metros à frente, derrubado e espancado.
À polícia, ao lado de sua advogada, Silva contou ter chegado a Rondon do Pará quatro dias antes do crime. Veio de ônibus de Itabunas, na Bahia, a convite de um primo seu, Ygoismar Mariano, hoje procurado por co-autoria do assassinato. Mariano chamou Silva para tomar um refrigerante, quando lhe propôs "um serviço que era para tirar a vida de um rapaz". Mostrou-lhe a vítima, caminhando na rua, e a casa.
Em seu relatório, a delegada de Polícia Civil Simoner Edoron Machado escreveu que Dezinho "exercia grande influência em lutas sociais, fato que desagradava e incomodava segmentos tradicionais da região", como fazendeiros, madeireiros e políticos".
Silva preencheu a ficha de antecedentes. Ao ser indagado sobre seu estado de espírito no momento do crime, explicou tê-lo cometido "sob forte emoção".


Texto Anterior: Outro lado: Acusações são improcedentes, afirma Unesco
Próximo Texto: A vítima: Filho investiga morte dos pais e acha testemunhas
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.