São Paulo, quarta-feira, 30 de outubro de 2002

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ELIO GASPARI

De roosevelt@edu para lula@gov.br

A única coisa de que os brasileiros devem ter medo é o próprio medo. Estou me repetindo e antecipando a conclusão desta mensagem.
Não conheço o Brasil. Estive aí em 1944 e passeei de jipe com o Getúlio Vargas na base aérea de Natal, mais nada. Resolvi lhe escrever porque o Adolf Berle chamou minha atenção para sua trajetória. O Berle foi meu embaixador aí. Ele tem mania de colecionar histórias de sucesso do capitalismo e ultimamente andava com uma estrela vermelha na lapela. O Stálin chegou a cumprimentá-lo, mas ele desfez a confusão. Era uma estrela do PT.
Achei a sua história interessante e acho que posso lhe dar uma ajuda, contando-lhe o que fizeram comigo -e o que eu fiz com eles.
Eu ganhei o meu primeiro mandato de presidente dos Estados Unidos em 1932. Tive menos da metade dos votos que o senhor conseguiu aí no domingo. O presidente Herbert Hoover, contra quem disputei a eleição, era uma espécie de príncipe do capitalismo. Estávamos no terceiro ano da Depressão, com mais de 10 milhões de desempregados, 5.000 bancos quebrados e 20 mil crianças desnutridas só nas escolas de Nova York.
Ganhei a Presidência propondo um "novo contrato". Desculpe-me, mas são poucas as coisas que temos em comum. Meu pai não foi estivador, meu tio foi presidente e minha família não veio para Nova York neste século -mas no 18-, muito menos de pau-de-arara.
No dia seguinte à minha vitória, tanto Hoover como banqueiros e grandes empresários queriam que eu assumisse compromissos com o mercado. O clima não podia ser pior: o ouro e os capitais fugindo do país, cidadãos sacando seu dinheiro nos bancos. Veja só o que me disse o Hoover: "O maior problema é o estado de alma das pessoas. Ele degenerou numa tamanha perda de confiança no futuro que estamos numa situação alarmante". Temia-se que o meu "novo contrato" trouxesse irresponsabilidade fiscal, inflação e, acredite, ditadura. O danado botou isso numa carta. Noutra, escrita poucos dias depois, ele disse a um senador amigo: "Se o presidente eleito fizer essas declarações, terá ratificado o conjunto da nossa administração, o que significa que terá abandonado 90% do chamado "novo contrato'".
Não foi só o Hoover. Apareceu o banqueiro Bernard Baruch. Bom sujeito, financiava as campanhas do meu partido, e acho que tinha uma bancada pessoal de pelo menos 60 deputados. Ele me disse: "Corte gastos e cobre impostos. Cobre sobre tudo, de todo mundo". O Joseph Kennedy, pai do John, propôs a mesma coisa. O que eles queriam era quebrar as pernas do "novo contrato".
Foi aí que eu me enfezei. O país vive uma crise social que arranca o couro dos pobres, arrebenta a classe média e espalha o desemprego. A gente propõe uma reforma dessa sociedade, vai ao povo, ganha a eleição, recebe o mandato, e aparecem esses sujeitos dando a impressão de que os eleitores são imbecis e nós, asnos, a menos que façamos o que eles querem.
É aí que entra o Berle de novo. Ele era professor na Universidade Columbia e trabalhava na minha equipe. Ele me ajudou a fazer o discurso com que botei essa gente no lugar. Disse-lhes que estava encerrado o tempo do "Titan financeiro, a quem tudo demos, como se só ele pudesse construir ou desenvolver". A América tinha que produzir, e os americanos tinham que consumir. Tratava-se de sair da crise voltando ao básico. Algo como essa sua proposta de ter os brasileiros comendo três vezes por dia.
Meu discurso de posse acabou virando uma peça antológica de oratória. Fala-se muito de um trecho que eu acho banal ("A única coisa de que devemos ter medo é do próprio medo"). Gosto mais do pedaço onde trato dos "trocadores de dinheiro", uma gente que posava por sábia enquanto tinha lucros para distribuir. Vinda a crise, choramingam, pedindo "restauração da confiança". Cito de memória: "A confiança será restaurada na medida em que viermos a praticar valores sociais mais nobres que o mero lucro monetário".
Veja, sr. Da Silva, como as coisas mudam pouco. Em 1933 eu disse aos americanos: "Nossa primeira e principal tarefa é botar as pessoas para trabalhar".
Vá em frente. Faça tudo o que quer, faça primeiro o novo. Crie um hábito. Reserve 15 minutos de todos os seus dias para responder à seguinte pergunta: "O que é que eu fiz hoje pelos pobres?". Eu fiz o tal de "novo contrato" e agora saiu um livro, até premiado, dizendo que todos os meus programas, vistos separadamente, deram errado. Tomados em conjunto, deram certo. Era o que eu queria, uma América onde ninguém ficasse de fora. Isso tem um preço. Na casa da mãe do presidente Bush, por exemplo, era proibido falar meu nome.
O Berle vive citando essa moça, que me parece ser filha de metalúrgico, e é embaixadora aí em Brasília: o senhor encarna um sonho brasileiro, felizmente muito semelhante ao nosso velho e bom sonho americano.
Saudações interamericanas,
Franklin Roosevelt
P. S.: Eleanor recomenda-se a dona Marisa e pede-lhe que dê um abraço em dona Ruth Cardoso quando a encontrar.


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