São Paulo, domingo, 31 de julho de 2005

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ESCÂNDALO DO "MENSALÃO"/ O PUBLICITÁRIO

Do sertão ao mar de lama

FÁBIO VICTOR
ENVIADO ESPECIAL A BELO HORIZONTE E CURVELO

Assim como o filho Marcos Valério, que tem 1,71 m, Aidê Fernandes de Souza é miúda, não passa de 1,60 m. Diferentemente dele, cultiva uma vasta cabeleira negra, sob a qual se esparrama um par de olhos verdes. Os vincos que riscam a pele do rosto não impedem que se imagine que foi na juventude uma bela mulher.
Mas, no início da noite da última terça-feira, dona Aidê dava dó. Enquanto sua nora Renilda ainda depunha à CPI dos Correios, ela saiu para atender a porta da casa onde mora com o marido, Adeliro Francisco de Souza, pai de Valério, em Alípio de Melo, bairro de classe média baixa na periferia de Belo Horizonte, próximo à favela Vila São José.
Ao notar que se tratava de um repórter, dona Aidê, 70, passou a tremer e chorar. Tentou fechar o portão, mas, como as perguntas continuassem, manteve uma educada hesitação. Só balbuciava. "Não sei, não sei, não posso falar, não tenho condições. Espero que me entenda, estou muito abalada." E, indagada sobre o motivo das acusações contra o filho, disse uma última palavra: "Injustiça".


Melhor aluno da classe, vivia isolado do resto da turma e era alvo constante de gozações dos colegas


São dois os quebra-cabeças de Valério. O primeiro, o dos negócios políticos, tem sido decifrado nas investigações da CPI dos Correios, do Ministério Público e da PF em torno das acusações de que o empresário é o operador do "mensalão" e usa suas agências de publicidade para lavar dinheiro de caixa dois de campanhas.
O outro, relativo à história de sua vida privada, e do qual dona Aidê é peça essencial, se mostra quase tão intrincado quanto o primeiro, por dois motivos: a discrição que sempre marcou a trajetória da família e o medo de amigos e conhecidos de ter o nome relacionado ao do vilão da vez.
Curvelo, cidade-sertão-veredas citada na abertura da obra-prima de Guimarães Rosa, é o início de tudo. Foi lá que se conheceram e se casaram Adeliro, de Abaeté, e Aidê, de Corinto, ambas vizinhas a Curvelo, todas na região central de Minas Gerais.
Ela, técnica em contabilidade e filha de um próspero fazendeiro, ele, um sujeito pobre, comerciário e ponta-direita do Curvelo Esporte Clube. A diferença social fez com que o velho Fernandes resistisse ao casamento. Mas "Lêro", como Adeliro era e é conhecido, venceu a parada.
O casal teve cinco filhos: Aidezinha, pedagoga, Marcos Valério, Marcos Vinícius, funcionário do Banco do Brasil, Adelirinho, engenheiro, e o caçula Poolo Marcos, médico cirurgião torácico.
Mudaram-se para Belo Horizonte pouco após o casamento. Valério só nasceu em Curvelo, em 29 de janeiro de 1961, por comodidade da mãe, que tinha lá a ajuda dos parentes. Cresceu na zona noroeste da capital, nos bairros de Caiçara, Glória e Padre Eustáquio, numa família simples e unida.
Foi, no relato de parentes, uma criança comum, embora mais quieta e inteligente que a média, e extremamente apegada à mãe.
Concentrado, disciplinado e estudioso, Valério acostumou-se a ser primeiro de classe, o típico "CDF" -condição que lhe valeu, no colégio particular Padre Eustáquio, gozações e um apelido singular, BG, ou "Bom Geral".
A gíria, na Belo Horizonte dos anos 70, designava o sujeito sabe-tudo, que se acha infalível. A alcunha, contam ex-colegas de turma, surgiu num dia em que Valério, solicitado a emprestar uma borracha, retrucou: "Eu não uso borracha. Eu não erro".
"Ele era o mais bobão, aquele que queria entrar na turma e não conseguia. Tinha facilidade em aprender, mas não era criativo em brincadeiras, não pegava as meninas, não era bom em esportes. Era um nerd", define Renato Nogueira de Freitas, 46, o "Jarrão", que estudou três anos com Valério durante o colegial, de 1976 a 1978.
Era uma época em que da cabeça de Valério, hoje reluzente, brotava uma juba à Elvis Presley, como se pode ver na foto acima.
"Lembro do BG como o cara que só tirava dez e nunca questionou um professor", interpreta outro colega, que pediu anonimato.
Todos recordam de Valério como cobaia de maldades da turma do fundão, como quando comprou três vezes a mesma lapiseira de um colega ou foi obrigado a pular a janela da sala para reaver a bolsa escondida -e terminou trancado do lado de fora.
A psicanálise decerto explicaria a reviravolta que se processou no comportamento do adulto Marcos Valério. A névoa que hoje cerca os negócios do empresário remete à sua juventude, período em que é difícil distinguir fato de invenção.


Pai dedicado, trouxe ao país medalhista olímpica só para dar aulas de hipismo à filha, campeã mirim


Já sócio da agência SMPB, Valério divulgava ser engenheiro químico formado pela PUC de Minas. A faculdade, em recesso, informou não ser possível checar o dado. Contatados pela reportagem, formandos de 1982 e 1983, período em que ele possivelmente teria concluído o curso, afirmam jamais tê-lo conhecido. O Crea-MG (Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura) diz não ter registro em nome de Valério.
Sabe-se que iniciou a vida profissional no Bemge, o extinto banco estadual de Minas, comprado em 1998 pelo Itaú. Também neste ponto o quebra-cabeças volta a embaralhar, e as reticências dão a tônica dos depoimentos.
"Lembro dele na área operacional do Bemge, como assistente de gerente, algo assim. Mas tenho dificuldade de precisar, eram 1.200 funcionários sob minha supervisão", declara Murilo Piló Veloso, superintendente operacional do banco na época de Valério.
Diz o empresário que permaneceu por 20 anos no banco, em áreas diversas. Lá também, mas no departamento de treinamento, preparando cartilhas para reciclagem à distância, trabalhava Renilda, vizinha do bairro Padre Eustáquio com quem ele começara a namorar em 1979.
O casamento foi em 1º de agosto de 1986 -completa, portanto, 19 anos amanhã. Tiveram Luiz Gustavo, filho que viria a morrer de câncer aos 6 anos.
"Eles ficaram completamente arrasados, ele perdeu o chão. Achei que não fosse suportar a perda", conta Francimara Guedes, ex-cunhada de Valério, namorada de Poolo Marcos por oito anos, de 1986 a 1994.
Renilda, que largara o emprego para acompanhar o filho doente, nunca mais voltou a trabalhar. À época da morte, já havia nascido a segunda filha, Nathália, hoje com 14 anos. Depois veio João Vítor, 4.
Desde os primeiros anos do casamento, a família mora numa casa, depois convertida em mansão, no bairro Castelo, também na zona noroeste de Belo Horizonte, perto de onde os Fernandes de Souza sempre viveram -""bairro ruim, mas casa boa", na definição do alfaiate Hermano Carmo, que confeccionou ternos para Valério.
A prosperidade do imóvel, temporariamente substituído por uma casa num condomínio na região metropolitana de Belo Horizonte, acompanhou a da carreira do empresário. Depois do Bemge, ele passou a atuar mais na área financeira, primeiro no banco Agrimisa, mais tarde por incursões em Brasília até hoje pouco claras. Ele afirma ter trabalhado no Banco Central, o órgão nega.
Entrou para o meio publicitário em 1996, numa parceria igualmente nebulosa com o hoje vice-governador de Minas, Clésio Andrade (PL), na SMPB. Mais tarde abocanhou a parte do colega, de quem também comprou as cotas em uma outra agência, a DNA.
Surge aqui o Valério publicitário, um personagem mais intrigante do que se conhecia, porque de influência crescente, mas visibilidade ainda pequena.
Tido por funcionários como arrogante e insolente, que grita para se fazer impor e faz piadas sem graça buscando quebrar o gelo em reuniões, passa a acumular dinheiro e trabalho em doses cavalares. Não à toa, é a partir desse período que as investigações mostram o estreitamento dos seus laços com a política.
É também quando vira um homem estressado, que recorre a remédios, até mesmo calmantes, em busca de uma pretensa qualidade de vida. Que trabalha mais de 12 horas por dia. E que, calvo como quase todos os homens da família, adota a careca total.
Em 2000, ansioso e com 10 kg acima do peso, recorre à nutricionista Heloísa Magalhães. "A sensação que eu tinha é que ele ia sofrer um infarto a qualquer hora. Não tinha disciplina para nada, falava com várias pessoas ao mesmo tempo, tudo muito tumultuado", relata. O tratamento durou apenas cinco meses, interrompido por desencontros de agenda.
Foi também nessa época que ele contratou um dos muitos personal trainers que já teve. As aulas com Renata Cotta, numa academia da zona sul de Belo Horizonte, começavam pontualmente às 6h, o que sinaliza que Valério, que gastava ao menos meia hora de casa ao local, acordava cedíssimo.
A atividade, que ajudava o empresário a perder peso ao mesmo tempo em que buscava reforçar a musculatura do joelho esquerdo, operado do menisco em 1999 (em 2004, ele faria outra intervenção, só que no direito), e tinha como principal obstáculo a paixão de Valério por doces, também foi suspensa por falta de tempo.
"Sempre foi muito honesto e correto, me pagava sagradamente. Se algum dia esquecia o dinheiro, ficava preocupado em transferir logo o valor para a minha conta. É tanto que fiquei surpresa quando vi tudo isso", diz Cotta.
Não significa, entretanto, um caso de desprendimento com o próprio dinheiro. Ao contrário, Valério acumula casos de apego excessivo ao patrimônio -que cresceu 76% no primeiro ano do governo Lula, de R$ 3,8 milhões em 2002 para R$ 6,7 milhões no ano seguinte.
Sócio desde 2004 do Cepel, uma hípica em Belo Horizonte, reuniu os funcionários ao assumir e avisou que, como pretendia investir alto para transformar o local, ninguém poderia pensar em aumento nos cinco anos seguintes.
Um tratador de cavalo do Cepel tem só quatro folgas por mês, trabalha todo fim de semana e recebe R$ 400 -levaria nove meses, sem gastar com nada mais, para comprar uma das selas à venda na lojinha da hípica, a R$ 4.000.
Não há economia quando o assunto é o treinamento de Nathália, a filha campeã brasileira mirim de hipismo. Valério já trouxe ao país, com todas as despesas pagas, sumidades do hipismo, como a suíça medalhista olímpica Lesley McNaught ou o belga Jos Kemps, para dar aulas à garota.
"Tudo o que ele faz na vida é pelos filhos. Ligava diariamente para saber dos treinos da Nathália, estava aqui todos os finais de semana", afirma o cavaleiro Pedro Paulo Lacerda, técnico da garota e sócio de Valério no Cepel.
Das dezenas de pessoas ouvidas pela Folha na última semana, é quase unânime a idéia de um marido fiel e apaixonado e um pai devotado, mas rigoroso.
"Num treino, a menina errou um salto e levou um esporro dele: "Pô, eu gasto uma fortuna com isso para você fazer uma bosta dessas'", relata um tratador.
A parcimônia financeira de Valério é visível nos hábitos alimentares -seu restaurante predileto em Belo Horizonte é um bufê onde come-se à vontade por R$ 28,80- e atinge até mesmo parentes próximos. Dois tios do empresário, irmãos de dona Aidê, vivem em Curvelo em situação de pobreza.
Um deles, Joaquim Fernandes da Silva Filho, 62, é diabético e teve uma perna amputada em 2002. Recebe R$ 490 de aposentadoria. Nunca teve ajuda de Valério, mas diz não ter mágoa do sobrinho. "Pelo que ele tem aí, poderia ter me dado uma força, mas ainda custo a acreditar em tudo, sempre foi um rapaz tão bom."
Afirma ter certeza de que a irmã Aidê está sofrendo muito, mas ainda não falou com ela desde que estourou o escândalo. "Não tenho coragem de ligar. Somos uma família muito chorona, se eu for falar com ela vai ser um chororô."

Colaboraram Kátia Brasil e Paulo Peixoto, da Agência Folha, e Frederico Vasconcelos, da Reportagem Local

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