São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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NO PLANALTO

Esquerda ressurge em livro de Tarso Genro

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

Difícil distinguir hoje em dia esquerdistas de direitistas. Faltam referenciais. A mansidão do ex-PT no poder pôs em xeque a velha lenda de que esquerdistas comiam criancinhas.
A barba também já não serve de parâmetro. A rama que pende do rosto de Enéas Carneiro (Prona) humilha o bem-aparado feixe de fios que orna a face de Lula.
O guarda-roupa tampouco ajuda. Ao tradicional figurino bicho-grilo, a petista Marta Suplicy contrapôs modelitos Ives St. Laurent. Agora adornados com broches que trazem a estampa de Maluf.
De resto, a experiência comprova que, lançados ao mar do neoliberalismo, esquerdistas e direitistas nadam sincronizadamente. E morrem na mesma praia privativa do capital financeiro.
Num instante em que parecia impossível discernir Lula dos antecessores, chega às livrarias um livro revelador: "Esquerda em Progresso" (Editora Vozes). Escreveu-o o ministro Tarso Genro (Educação), ideólogo do ex-PT.
Embora fina (125 páginas), a obra é ambiciosa. Propõe-se a traçar rumos para a "nova esquerda". Lendo-a descobre-se por que o desempenho do ex-PT no governo aproximou o partido de seus opostos. Genro declara-se simpático à tese de que "é necessário rebaixar o programa estratégico da emancipação, para colocar no centro da práxis a luta imediata por inclusão [...] e distribuição de renda".
No governo, diz Genro, o ex-PT privilegia a "segurança". Recusa-se a encarnar o papel de "vanguardista do tipo bolchevique". Almeja "um acordo com sentido policlassista". A exacerbação da "luta de classes" fragilizaria o governo. Diz o ministro: "Não há nenhum exemplo histórico de políticas transformadoras que não tenham combinado realismo e utopismo. Lênin, Rooselvelt, Mao, Deng, Getúlio Vargas, Lázaro Cárdenas, Kennedy, todos foram realistas e utópicos ao mesmo tempo." Para Genro, no "centro" do desafio da esquerda está o enfrentamento ao "processo de globalização financeira". Ditado "pelos Estados Unidos", produziu "uma ampliação desmesurada do sistema financeiro internacional, alienado da produção [...]".
No Brasil, escreve Genro, "as políticas sociais e o projeto econômico que começaram a ser implementados pelo governo Collor foram seguidas pelos governos de FHC". O tucanato "rapidamente deu efetividade ao projeto político do grande capital". Pior: "Sua base parlamentar, articulada fisiologicamente e reunindo as velhas e novas oligarquias, garantiu-lhe a inviabilização do projeto social contido na Constituição de 1988".
O ministro se exime de lembrar que o governo a que serve também toma a bênção ao "grande capital", come na mão da mesma "base parlamentar" fisiológica e rende homenagens aos oligarcas de sempre, Sarney entre eles.
Genro afirma que "a inserção subordinada do Brasil no sistema global" levou à "afirmação de um modelo econômico baseado no neo-rentismo especulativo". Propõe uma "ruptura com a globalização financeira". Silencia sobre o banquete que o companheiro Palocci serve aos neo-rentistas.
O ministro defende o "fechamento" da economia "em níveis que possam ser sustentados por novas alianças políticas internacionais". Ele é taxativo: "Não há a menor possibilidade de pensar-se em qualquer transformação [...] que tenha um caráter socializante ou socialista -do poder e da riqueza- sem que o país tenha uma ambição nacional que se materialize em um projeto nacional". Na arena política, Genro identifica a falência do modelo de representação. Abraça a "democracia direta". Que passa pela "exacerbação da consulta, do referendo, do plebiscito e de outras formas de participação".
Fala de uma "reengenharia institucional nos diversos níveis da federação". O modelo ideal contemplaria "uma estrutura parlamentar unicameral". Seus integrantes estariam sujeitos à cassação do mandato por "recall". Também o presidente da República teria de reconfirmar o próprio mandato em consultas anuais ao eleitorado.
Genro condiciona o sucesso do "controle democrático do Estado" a um ataque frontal ao "monopólio das comunicações". Acha que é preciso "desconstituir" o poder da mídia. A "manipulação da informação", diz ele, "tem sido fundamental para a implantação do projeto neoliberal [...]."
Recomenda a criação de "uma estrutura estatal de caráter político-administrativo", para regular a "liberdade de informação e de opinião, hoje totalmente comprometidas pela verdadeira ocupação que as elites fizeram dos meios de comunicação mais potentes e incidentes sobre a vida cotidiana". Haveria "um conselho permanente de democratização da informação, formado por representantes designados pelos três poderes e pelos partidos políticos, mas cuja composição majoritária seria formada por membros eleitos nos Estados".
A finalidade do conselho seria "regrar e vigiar a aplicação de regras que permitam liberdade de informação, livre trânsito de opiniões, obstrução de qualquer monopólio na área, bem como a elevação dos padrões éticos e culturais dos meios de comunicação".
Em resumo: o modelo petista exposto por Genro passa por um "realismo" que impõe ao brasileiro comum, eterno figurante de sua história, um novo período de espera antes de entrar em cena. E desemboca na "utopia" de um regime submetido a meios de comunicação subjugados.


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