São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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JANIO DE FREITAS

O dia do absurdo

Ainda que cause algum transtorno antes e alguma surpresa depois, a votação de segundo turno não ameaça com as conseqüências graves, para o futuro brasileiro, que peessedebistas e petistas prevêem, conforme o resultado. O grave mesmo está em outra eleição, gravidade bastante para fazer da próxima terça-feira mais um dia do absurdo entre as nações. Ou por outra, o dia provavelmente mais simbólico do que chamamos de civilização ocidental.
Enquanto existiu a União Soviética, a expressão era maior e mais eloqüente: falava nos "valores da civilização ocidental e cristã" - uma demonstração involuntária de que essa civilização, de valores tão puros, tão humanitária, não considerou os milhões de judeus dignos de integrá-la. E não foram os nazistas os autores e nem mesmo os usuários da expressão, que fez carreira como estandarte do "mundo livre".
Pois terça-feira será o dia do absurdo. Os Estados Unidos irão às urnas para indicar o seu presidente pelos próximos quatro anos. Um país indica o seu presidente e todos os demais países do mundo suspendem a respiração, ansiosos uns e angustiados outros, todos sabedores de que, em muitos sentidos, a preferência norte-americana será mais importante para os seus destinos nacionais do que se fosse a escolha dos seus próprios mandatários.
Como quem indicasse apenas um presidente, os eleitores dos Estados Unidos indicam quem terá o poder da força militar e financeira sobre o planeta. Indicam é bem a palavra. Porque o sistema eleitoral norte-americano assegura ao poder político e, se necessário, ao judicial -ambos indissociáveis do poder econômico- a palavra final sobre quem será o presidente.
Lembre-se, a propósito, que o democrata John Kennedy valeu-se de intervenções pouco convencionais de chefes gângsteres, na disputa eleitoral, para chegar à presidência. E o atual George Bush, além de derrotado pelos votos do povo, contou com irregularidades eleitorais na Flórida governada pelo irmão e, depois, com precipitada decisão da Corte Suprema de maioria republicana (lá, os magistrados têm associação partidária). Assim recebeu a Presidência que, pelo comprovado na revisão eleitoral incumbida à Universidade Harvard, caberia de direito ao seu oponente, o democrata Al Gore.
Uma ordem/desordem internacional sujeita ao superpoder de homens de incertas qualidades, elevados por métodos tão aquém do necessário, pode ser ocidental, porque imposta a partir do Ocidente, eventualmente cristã ou não, mas não pode ser entendida como civilização.
O que todo esse absurdo reserva ao mundo, ao menos pelos próximos quatro anos, em grande parte se esboça depois de amanhã. Se vitorioso, George Bush terá a oportunidade de melhorar sua marca de 100 mil mortos civis no Iraque, na maioria mulheres e crianças, segundo o levantamento conjunto, revelado nesta semana, pelas universidades Columbia, Johns Hopkins e Al Mustansiriya. Bush talvez consiga superar Nixon/Kissinger e Johnson, artistas do napalm no Vietnã.
E John Kerry quem é, o que será se vitorioso? Uma incógnita que funciona como alternativa para quem já sabe o que é George Bush. O que pode ser muito e pode ser nada, dependendo de quanto se sujeite às regras, tradições e poderes que preservam o mundo perdido em absurdos.


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