São Paulo, domingo, 01 de junho de 2008

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+ Marcelo Leite

Pai e mãe da biopirataria


Um fazendeiro inglês fracassado revelou-se um biopirata talentoso

Um dos eventos decisivos da história do Brasil teve lugar na Amazônia e, como tudo que vem de lá, é muito falado e pouco conhecido: o contrabando de aproximadamente 70 mil sementes da seringueira Hevea brasiliensis de Santarém para os Kew Gardens de Londres, em 1876, por sir Henry Alexander Wickham (1846-1928).
O episódio é considerado "a mãe de todas as biopiratarias", como se escreveu aqui em setembro de 2007. Duas coisas passaram então em branco: quem foi, afinal, Henry Wickham, e por que demorou até a véspera da Primeira Guerra Mundial para o golpe da potência britânica render dividendos.
Essa lacuna histórica e de informação acaba de ser preenchida com a leitura de "The Thief at the End of the World" (O Ladrão no Fim do Mundo), de Joe Jackson (Viking, 2008, 414 págs., US$ 27,95). Recomenda-se a leitura, apesar dos seguidos erros de transcrição de nomes como "Taperihna". Noves fora, aprende-se muito sobre o Brasil e o real valor da biodiversidade com a minuciosa pesquisa de Jackson. Foi só no final da vida que Wickham conquistou o título de sir, prestígio e algum dinheiro. Nascido em família abastada, o garoto londrino perdeu o pai para o cólera em 1850.
Para alimentar os três filhos, a viúva teve de recorrer ao trabalho manual, como modista de chapéus.
O menino Henry criou-se nas ruas de Londres. Como tantos na capital do século 19, maravilhou-se com a Grande Exposição de 1851 e seu Palácio de Cristal. A atração mais visitada era a Vulcanite Court de Charles Goodyear, que 12 anos antes havia descoberto o processo de vulcanização da borracha.
Com ele, a exótica matéria-prima dos confins da selva tropical ganhava a estabilidade necessária para forjar, com o aço e o petróleo, o tripé do século 20.
Tentando escapar da pobreza, Wickham reinventou-se como pioneiro e explorador, com a idéia fixa de fazer fortuna com a borracha. Fracassou em quase tudo que fez. Para não retirar prazer da leitura de suas peripécias narradas por Jackson, basta aqui enumerar os lugares por onde andou dando com os burros n'água: Nicarágua, Venezuela, Brasil, Queensland (Austrália), Belize e Papua-Nova Guiné -nesta ordem.
Seu golpe de sorte foi ter sido procurado pelos Kew Gardens, jardim botânico da rainha Vitória, quando estava passando fome numa arruinada plantação de café perto de Santarém (PA). Arrastara para lá toda a família. Lá também já tinha enterrado quatro dos parentes, vitimados por febre amarela e malária.
O fazendeiro fracassado revelou-se, contudo, um biopirata talentoso. Fez tudo certo, e 2.700 sementes de H. brasiliensis germinaram em Kew. O resto é história.
Wickham, porém, ainda amargaria dissabores e ostracismo. Os luminares de Kew desprezaram sua oferta de coordenar a aclimatação das seringueiras na Ásia, assim como suas recomendações de plantio. Ele indicara terrenos altos e drenados como mais propícios, pois havia obtido neles as melhores sementes.
A elite dos botânicos britânicos, porém, dirigiu os primeiros experimentos para áreas úmidas do Ceilão e da Índia. A demora em assimilar o conhecimento tácito de Wickham, obtido em campo, adiou por décadas o boom de borracha cultivada. Quando veio, na década de 1910, os americanos é que saíram ganhando (e os barões da borracha brasileira foram à breca).
Por aqui, também, muita gente acha que vai conseguir resolver o futuro da Amazônia sem nunca ter tirado os pés de Brasília.


MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Brasil, Paisagens Naturais - Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas Brasileiros" (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ).
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br


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