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+ Marcelo Leite
Pai e mãe da biopirataria
Um fazendeiro inglês fracassado revelou-se um biopirata talentoso
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Um dos eventos decisivos da
história do Brasil teve lugar na
Amazônia e, como tudo que
vem de lá, é muito falado e pouco conhecido: o contrabando de aproximadamente 70 mil sementes da seringueira Hevea brasiliensis de Santarém
para os Kew Gardens de Londres, em
1876, por sir Henry Alexander Wickham (1846-1928).
O episódio é considerado "a mãe de
todas as biopiratarias", como se escreveu aqui em setembro de 2007. Duas
coisas passaram então em branco:
quem foi, afinal, Henry Wickham, e
por que demorou até a véspera da Primeira Guerra Mundial para o golpe da
potência britânica render dividendos.
Essa lacuna histórica e de informação acaba de ser preenchida com a leitura de "The Thief at the End of the World" (O Ladrão no Fim do Mundo),
de Joe Jackson (Viking, 2008, 414
págs., US$ 27,95). Recomenda-se a leitura, apesar dos seguidos erros de
transcrição de nomes como "Taperihna". Noves fora, aprende-se muito sobre o Brasil e o real valor da biodiversidade com a minuciosa pesquisa de
Jackson. Foi só no final da vida que
Wickham conquistou o título de sir,
prestígio e algum dinheiro. Nascido
em família abastada, o garoto londrino perdeu o pai para o cólera em 1850.
Para alimentar os três filhos, a viúva
teve de recorrer ao trabalho manual,
como modista de chapéus.
O menino Henry criou-se nas ruas
de Londres. Como tantos na capital do
século 19, maravilhou-se com a Grande Exposição de 1851 e seu Palácio de
Cristal. A atração mais visitada era a
Vulcanite Court de Charles Goodyear,
que 12 anos antes havia descoberto o
processo de vulcanização da borracha.
Com ele, a exótica matéria-prima dos
confins da selva tropical ganhava a estabilidade necessária para forjar, com
o aço e o petróleo, o tripé do século 20.
Tentando escapar da pobreza, Wickham reinventou-se como pioneiro e
explorador, com a idéia fixa de fazer
fortuna com a borracha. Fracassou
em quase tudo que fez. Para não retirar prazer da leitura de suas peripécias narradas por Jackson, basta aqui enumerar os lugares por onde andou
dando com os burros n'água: Nicarágua, Venezuela, Brasil, Queensland
(Austrália), Belize e Papua-Nova Guiné -nesta ordem.
Seu golpe de sorte foi ter sido procurado pelos Kew Gardens, jardim botânico da rainha Vitória, quando estava passando fome numa arruinada
plantação de café perto de Santarém
(PA). Arrastara para lá toda a família.
Lá também já tinha enterrado quatro
dos parentes, vitimados por febre
amarela e malária.
O fazendeiro fracassado revelou-se,
contudo, um biopirata talentoso. Fez
tudo certo, e 2.700 sementes de H.
brasiliensis germinaram em Kew. O
resto é história.
Wickham, porém, ainda amargaria
dissabores e ostracismo. Os luminares
de Kew desprezaram sua oferta de
coordenar a aclimatação das seringueiras na Ásia, assim como suas recomendações de plantio. Ele indicara
terrenos altos e drenados como mais
propícios, pois havia obtido neles as
melhores sementes.
A elite dos botânicos britânicos, porém, dirigiu os primeiros experimentos para áreas úmidas do Ceilão e da Índia. A demora em assimilar o conhecimento tácito de Wickham, obtido
em campo, adiou por décadas o boom
de borracha cultivada. Quando veio,
na década de 1910, os americanos é
que saíram ganhando (e os barões da
borracha brasileira foram à breca).
Por aqui, também, muita gente acha
que vai conseguir resolver o futuro da
Amazônia sem nunca ter tirado os pés
de Brasília.
MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Brasil, Paisagens Naturais - Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas
Brasileiros" (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia
( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ).
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br
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