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A segunda humanidade
Estudo genético revela que espécie humana quase se dividiu em duas há cerca de 150 mil anos
CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA
Os bosquímanos da
África do Sul sempre foram considerados povos singulares: são fisicamente distintos, preservam
uma cultura de caçadores-coletores que remete aos hábitos
da humanidade na Idade da Pedra e têm línguas que não se
parecem com nenhuma outra
(uma de suas consoantes, por
exemplo, é um estalo feito com
a boca). Agora, um grupo de geneticistas encontrou uma razão para tamanhas diferenças:
os ancestrais dos bosquímanos
estiveram a ponto de originar
uma outra espécie humana.
Durante um tempo que variou de 50 a 100 milênios, os
khoisan (nome comum dado a
todos esses povos) estiveram
evoluindo isoladamente do
restante das populações de Homo sapiens, uma espécie relativamente nova e com talento
para colonizar novas terras
-mas que, no entanto, ainda
não havia deixado a África.
Esse isolamento só se rompeu há 40 mil anos. Não fosse
essa troca recente de genes, os
khoisan possivelmente estariam a caminho da especiação,
evento que acontece quando
duas populações de organismos evoluem separadamente a
ponto de não poderem mais se
cruzar entre si.
"Especiação não é um termo
adequado", corrige o geneticista Fabrício Santos, da UFMG
(Universidade Federal de Minas Gerais). "Deve-se falar em
diferenciação. Demonstrou-se
que realmente eles ficaram separados por um tempo significativo, mas não foi tempo suficiente para haver também isolamento reprodutivo, que é a
marca final da especiação. Cinqüenta mil anos são 2.000 gerações, o que é um tempo relativamente curto para a evolução de novas espécies com isolamento reprodutivo."
Marcas
Seja como for, essa longa separação entre os khoisan e o
restante da humanidade deixou marcas profundas nos genes dos bosquímanos. A dimensão dessas marcas foi revelada na semana passada por
Santos e colegas de várias instituições de pesquisa ao redor do
mundo. Esse grupo de cientistas compõe o Projeto Genográfico, um esforço para mapear a
história das populações humanas e de suas migrações ao redor do planeta olhando o DNA.
Em um artigo publicado on-line na revista científica "American Journal of Human Genetics", o geneticista americano
Spencer Wells e colegas de oito
países olharam um tipo específico de DNA, contido nas mitocôndrias (as usinas de energia
das células). O chamado DNA
mitocondrial é um excelente
contador de histórias de migração, porque escapa do embaralhamento genético ocorrido
entre os cromossomos no núcleo celular durante a fecundação. Além disso, ele só é transmitido de mãe para os filhos e
sofre mutações (trocas espontâneas em alguma das letras
químicas A, T, C e G que compõem a molécula de DNA) a
uma taxa conhecida.
Estudando o DNA mitocondrial (mtDNA, na sigla) de duas
pessoas quaisquer, é possível
saber em que ponto do passado
elas compartilharam um ancestral materno comum.
Wells e seu grupo, no entanto, não estão atrás de um ancestral de duas pessoas, mas sim
dos ancestrais maternos de toda a humanidade. Para isso,
eles seqüenciaram o DNA mitocondrial completo de 624
pessoas, comparando as mutações que elas têm em comum
(haplogrupos) e datando as separações entre cada população
de acordo com o relógio molecular oferecido pelo mtDNA
(no qual uma mutação ocorre a
cada 5.138 anos, em média). Isso permitiu montar a árvore genealógica materna humana.
Dois troncos
O que os cientistas verificaram foi que essa árvore não tem
um único tronco e sim dois,
ambos enraizados na África
-que os cientistas chamam de
ramo L0 e ramo L1'5.
Ao tronco L0 pertencem os
khoisan. Ao L1'5 pertence basicamente todo o resto da humanidade. As linhagens que deixaram o continente africano a
partir de 60 mil anos atrás e geraram desde os índios americanos até os aborígenes da Austrália, passando pelos europeus
e os asiáticos, são apenas duas;
as outras são todas africanas.
"Simplificando, um bantu
(típico africano) é mais relacionado conosco [de ancestrais
europeus ou indígenas] do que
com os khoisan", diz Santos.
Para o cientista, o achado foi
uma surpresa: "Pouca atenção
havia sido dada à diversidade
genética na África. Sabia-se que
ela era maior, mas o estudo detalhado mostrou que, na maior
parte do tempo, nossa espécie
esteve lá pela África, diferenciando-se internamente", antes das migrações para fora.
A análise também indica a
formação de pequenas comunidades independentes em vez de
um espalhamento uniforme
dos humanos modernos. O tamanho pequeno das populações provavelmente facilitou o
isolamento dos ancestrais dos
khoisan no sul do continente,
devido talvez a uma mudança
no clima. A barreira só seria
rompida milênios mais tarde,
quando a tecnologia "moderna" do fim da Idade da Pedra
permitiu recolonizar o sul.
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