São Paulo, domingo, 04 de novembro de 2007

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Em tempo

Cientista pede anulação de artigo publicado há 52 anos depois de vê-lo sendo usado por criacionistas na internet

Paul White/Associated Press
Pinturas de Adão e Eva de Albrecht Dürer são expostas no Museu do Prado, em Madri


CORNELIA DEAN
DO "NEW YORK TIMES"

Em janeiro de 1955, Homer Jacobson, professor de química no Brooklyn College, nos EUA, publicou um artigo intitulado "Informação, Reprodução e a Origem da Vida" na "American Scientist", revista da sociedade científica Sigma Xi.
No artigo, ele especulou sobre as qualidades químicas da Terra no Período Hadeano, bilhões de anos atrás, quando o planeta estava começando a se resfriar a ponto de, segundo Jacobson, "já se tornar possível imaginar que alguns compostos resistentes fossem capazes de sobreviver".
Em entrevista concedida pelo telefone desde sua casa em Tarrytown, Nova York, Jacobson disse que ninguém prestou muita atenção ao artigo na época. Hoje, porém, ele está ganhando um reconhecimento que Jacobson não deseja -de criacionistas que o citam como prova de que a vida não poderia ter surgido na Terra sem uma intervenção divina.
Assim, depois de 52 anos, Jacobson se pediu retratação (anulação) do artigo.
A retração aconteceu depois de Jacobson, por mero capricho, ter feito uma busca no Google com seu nome. Aos 84 anos de idade e estando aposentado há cerca de 20 anos, "tive vontade ver o que eu fiz nesses muitos anos", disse ele. "Foi mera vaidade. O que mais posso dizer?"
Ele encontrou muitas menções a seu trabalho sobre compostos chamados polímeros; sobre a teoria da informação, um ramo da matemática que envolve estatísticas e probabilidade, e sobre outros temas. Mas seu nome também era citado em sites criacionistas que estão usando seu artigo de 1955 como comprovação científica de suas opiniões.
O Darwinismrefuted.com, por exemplo, diz que o artigo de Jacobson "enfraquece o cenário segundo o qual a vida pode ter surgido por acaso". Outro site criacionista, o Evolution-facts.org, diz que as descobertas dele significam "que, em questão de poucos minutos, todas as diversas partes do organismo vivo teriam tido de se criar a partir de água revolta", proeza impossível sem a ajuda de uma mão sobrenatural.
"Ai, ai", disse Jacobson. "Era assustador."
Não é que ele faça objeção à religião, diz o cientista. Apesar de ter sido criado numa família secular, disse ele, "não tenho problemas com a religião, desde que você não rejeite os fatos concretos". Afinal, afirmou, ninguém pode refutar a existência de Deus. Mas Jacobson disse que ficou consternado em pensar que seu trabalho pudesse ser utilizado para fazer o que ele descreve como denúncia "mal-intencionada" de Darwin.

Erros
As coisas pioraram quando ele releu seu artigo, disse Jacobson, porque ele identificou erros no texto. Um deles é relacionado ao que ele chamou de "conjetura" sobre se os aminoácidos, os blocos básicos das proteínas e componentes cruciais das coisas vidas, poderiam formar-se naturalmente.
"Nas circunstâncias que eu mencionei -apenas um grupo de substâncias químicas juntas, paradas-, não", disse ele. "Porque é preciso que a energia saia das coisas que compõem a glicina para a glicina, sendo a glicina o aminoácido mais simples."
Havia fontes potenciais de energia, disse ele. Então dizer que nada de grande monta aconteceria na ausência dela "não vem absolutamente ao caso". "E isso não é algo que eu disse", acrescentou.
Outra afirmação feita no artigo, sobre o que teria tido de ocorrer simultaneamente para que surgisse matéria viva, é simplesmente equivocada, disse Jacobson, acrescentando: "Foi um erro estúpido, mas ninguém nunca o flagrou".
Vance Ferrell, que disse ter compilado o material postado no Evolution-facts.org, afirmou que, se o artigo for retratado, ele retirará a referência a ele. Ferrell disse que não tem como saber o que motivou Jacobson, mas que "se cientistas dão a impressão de serem pró-criacionistas, eles podem enfrentar problemas".
"Isso é motivo de constrangimento", disse Ferrell.
Jacobson reconheceu que isso é verdade. Em sua carta de retração, escreveu: "Me sinto profundamente constrangido por ter sido o originador de tais afirmações equivocadas".
Não é incomum que cientistas publiquem artigos e, quando descobrem evidências que os contestam, anunciem que se equivocaram. A idéia de que todo o conhecimento científico é provisório, sujeito a ser contestado e derrubado, é uma das coisas que diferencia questões de ciência de questões de fé.
Assim, a retração de Jacobson "obedece à mais nobre tradição científica", escreveu Rosalind Reid, editora da "American Scientist", na edição de novembro-dezembro da revista, que inclui a carta de Jacobson.
Reid escreveu que a carta de Jacobson mostra "a distinção entre um cientista que não pode deixar um erro continuar inconteste, não importa o constrangimento que causará sua retificação pública", e pessoas "que se aferram a dogmas".


Tradução de Clara Allain


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