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+ Marcelo Gleiser
Partículas-fantasmas
Seu corpo é atravessado por trilhões deles por segundo sem que você se dê conta
Todo fantasma que se preze é capaz de atravessar paredes. Provavelmente, isso significa que
ele é feito de algum material que não
interage com a matéria comum, feita
de prótons, nêutrons e elétrons. O estranho é que, mesmo assim, fantasmas podem deslocar móveis, fazer barulho e outros efeitos que dependem
de sua interação com a matéria. Bem,
talvez seja por isso que sejam entidades "sobrenaturais"; de naturais realmente elas não têm nada.
Existem, no entanto, objetos perfeitamente naturais que também podem
atravessar paredes. São os neutrinos,
as partículas mais exóticas da natureza, pelo menos das que conhecemos
até agora. Sua história, desde que foram propostas até sua descoberta em
experimentos, e as últimas surpresas
que andam pregando nos físicos (que
veremos numa outra semana), ilustra
bem algo de que é sempre bom lembrar: a ciência é uma narrativa em andamento, que vai se aprimorando aos
poucos, à medida que aprendemos
mais sobre o mundo.
Durante as primeiras duas décadas
do século passado, várias descobertas
sobre o núcleo atômico revelaram que
os átomos podem se transmutar uns
nos outros, realizando espontaneamente o sonho dos alquimistas. Infelizmente, não era o chumbo que se
transmutava em ouro, mas átomos
mais pesados, como o urânio, ditos radioativos por emitirem radiação.
Dos três tipos de radiação emitidos
pelos núcleos de átomos radioativos,
um deles, chamado de radiação beta,
era particularmente misterioso. Sabia-se que a radiação beta tinha carga
elétrica negativa; logo ficou claro que
os raios beta eram elétrons sendo ejetados pelo núcleo. Todavia, sabia-se
que o núcleo era eletricamente positivo. De onde vinham esses elétrons
com carga negativa? E sua energia?
A situação era exasperadora. Alguns
físicos, como o grande Niels Bohr,
chegaram até a sugerir que a lei de
conservação de energia fosse abandonada. A solução foi oferecida por Wolgang Pauli em 1930: "Tenho uma solução desesperada, a possibilidade de
que exista no núcleo uma partícula
sem carga elétrica que é ejetada com o
elétron". A partícula ficou conhecida
como "neutrino", ou seja, um nêutron
(o companheiro do próton no núcleo,
descoberto em 1932) pequenino.
Ficou claro que o decaimento beta
é, na verdade, a desintegração de um
nêutron num próton, num elétron e
num neutrino (mais precisamente um
"antineutrino", mas vamos deixar isso
de lado). Note que a carga elétrica é a
mesma antes e depois da reação [zero
= (+) + (-) + zero]. O neutrino garante,
também, a conservação de energia.
Apenas em 1956 o neutrino foi descoberto. A demora se deveu às estranhas propriedades dessa partícula.
Para ser detectada, uma partícula precisa interagir com um detector. Por
exemplo, você só enxerga porque seus
olhos podem detectar os fótons, as
partículas da luz. No caso dos neutrinos, sua interação com partículas de
matéria como elétrons é tão fraca que
eles são capazes de atravessar paredes, pessoas e até mesmo planetas inteiros sem uma única interação.
Seu
corpo é atravessado por trilhões deles
por segundo sem que você se dê conta!
Por isso, os neutrinos são chamados
de partículas-fantasmas.
De onde vêm esses neutrinos todos?
A maioria vem do centro do Sol, onde
temperaturas de 15 milhões de graus
Celsius são capazes de fundir hidrogênio em hélio, produzindo também
neutrinos em abundância: ao menos
na física, os fantasmas vêm da luz e
não das trevas.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
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