São Paulo, domingo, 04 de novembro de 2007

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+ Marcelo Leite

Proteção aos animais

Parece sensato proteger de modo diferenciado animais com maior capacidade de sofrer e angustiar-se

Parlamentares do Congresso Nacional sabem proteger os seus, como deixaram patente as manifestações de solidariedade ao tucano Ronaldo Cunha Lima, que renunciou ao mandato de deputado para escapar de julgamento agendado no Supremo Tribunal Federal. Há 14 anos, o paraibano havia dado um tiro na cara do rival Tarcísio Burity, sem conseguir matá-lo (Burity só morreria anos depois, em 2003).
No que respeita a animais de verdade, contudo, o Congresso demonstra desprezo, na melhor das hipóteses. Nunca se deu ao trabalho de aprovar legislação que de fato discipline o uso de animais em pesquisa. A lei em vigor (nº 6.638), sancionada em 1979 pelo nada saudoso general João Figueiredo, carece até hoje de regulamentação. Vale dizer: não pegou.
Não que alguns parlamentares não tenham tentado. Em 1995 -12 anos atrás, portanto- o deputado e médico sanitarista Sérgio Arouca (PPS-RJ, morto também em 2003) apresentou um projeto de lei (nº 1.153) razoável.
A proposta de Arouca criava um Sistema Nacional de Controle de Animais de Laboratório (Sinalab), sob a égide do Ministério do Meio Ambiente. Fixava normas para a responsabilização administrativa, civil e penal na experimentação e vivissecção de animais, mas só daqueles do filo Chordata, ou cordados, bichos com pelo menos um rascunho de coluna vertebral.
De fato, não há muito sentido em criar regras para dissecar minhocas, como fazia a inesquecível professora Zulmira, do Colégio Bandeirantes, em 1970. Defensores mais extremados dos direitos dos animais podem não concordar, mas parece sensato proteger de modo diferenciado aqueles animais com maior capacidade de sofrer e angustiar-se -mais parecidos conosco, enfim.
Chamar essa premissa de "especismo" não resolve a questão. Animais não-humanos nunca serão iguais a animais humanos. O problema é que eles tampouco são tão diferentes quanto se considerava poucas décadas atrás, a ponto de justificar-se seu uso como coisas.
Pois bem: após alguma discussão com a comunidade científica, em 1997 o governo FHC encaminhou ao Congresso um projeto de lei reformulado (nº 3.964). Em lugar de um Sinalab agora se propõe um Concea (Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal), abrigado já no Ministério da Ciência e Tecnologia, não mais no Meio Ambiente. Em lugar de cordados, só protege vertebrados.
Oito das 14 cadeiras ficam reservadas para entidades científicas, hegemonia que pode vir a ser questionada.
Ela permite supor que, entre o interesse dos pesquisadores e o dos animais, o Concea fique com o primeiro.
Além disso, seria bem-vinda uma menção mais explícita, no projeto, à obrigação de só realizar experimentos que não possam ser substituídos por métodos alternativos.
Apesar disso, é outra proposta razoável, que tiraria os animais do limbo legal que o Brasil lhes reserva, na contramão da maioria dos países civilizados. É sobre esse par de propostas, ora em tramitação conjunta na Câmara dos Deputados, que a Federação de Sociedades de Biologia Experimental (Fesbe) pede decisão num abaixo-assinado que na quinta-feira já contava com 2.359 apoios. Até agora, em vão.
O tucano Cunha Lima afirmou, em sua carta de renúncia, que preferia ser julgado na Justiça comum. "Como um igual que sempre fui", escreveu. Como também diziam os porcos de "Revolução dos Bichos", clássico de George Orwell, todos os animais são iguais -mas alguns animais são mais iguais que outros.


MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Clones Demais" e "O Resgate das Cobaias", da série de ficção infanto-juvenil Ciência em Dia (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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