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ARQUEOLOGIA
Moradores e caçadores da região queimam pneus perto de desenhos milenares para escapar da fiscalização
Fuligem destrói pinturas rupestres no PI
CRISTINA AMORIM
ENVIADA ESPECIAL A SÃO RAIMUNDO NONATO (PI)
No meio do sertão nordestino, a
caça proibida de animais silvestres tem uma contrapartida inusitada e perigosa para o patrimônio
histórico mundial. Dezenas de
pinturas rupestres, produzidas
por grupos humanos que estão
entre os primeiros a ocupar a
América do Sul, são destruídas
deliberadamente dia após dia sob
os olhos de autoridades e comunidade no sudeste do Piauí.
Uma escala de interesses une as
duas pontas. Os desenhos, datados de 12.000 anos a 3.500 anos
atrás, ficam em paredões de arenito nas cercanias do Parque Nacional Serra da Capivara -tombado pela Unesco em 1991 como
patrimônio da humanidade justamente pela riqueza arqueológica.
Animais regionais, como o tatu,
são pratos apreciados tradicionalmente entre os moradores da caatinga, servidos ensopados ou como petisco, e se travestiram em
iguaria fina para ricos desde que a
caça se tornou escassa.
A nova demanda incentiva caçadores e famílias pobres a entrar
na mata atrás dos bichos e se instalarem perto de paredes com
pinturas. Para driblar a fiscalização, solicitada pela Fundham
(Fundação Museu do Homem
Americano), co-gestora do parque, eles queimam junto às paredes pneus e quaisquer outros materiais que produzam fuligem suficiente para cobrir os desenhos
-de forma irremediável.
Para justificar a estada no terreno, mesmo improvisada, muitos
caçadores dizem que estão apenas
trabalhando em agricultura de
subsistência, cultivando principalmente milho e mandioca. Chegam a provocar pequenas queimadas para plantar, que com freqüência escapam do controle e
acabam com a vegetação ao redor. A caatinga, branca na época
da seca e verde na época de chuva,
adquire tons cinzentos.
"Isso não sai mais, não", diz um
técnico do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) do
Piauí, que pediu para não ser
identificado, mostrando uma
grande mancha escura que sobe
pela pedra. No alto, ainda é possível identificar algumas figuras humanas pintadas em vermelho. Ele
chega a nomear quem são os responsáveis, mas sem o flagrante da
caça ilegal, há pouco o que fazer.
Camas
O lugar é chamado de Boqueirão das Camas, por causa dos
quartos que caçadores improvisam nas encostas, com colchões
escondidos entre a rocha e varas
fincadas no chão. Ele está localizado a cerca de dez quilômetros do
parque nacional, na divisa dos
municípios de São Raimundo
Nonato e Tamboril. Apesar da
proximidade com o parque, diversos sítios arqueológicos estão
desprotegidos. O acesso é difícil e
há poucas equipes científicas e de
fiscalização para trabalhar dentro
e fora da Serra da Capivara.
"Toda essa região abriga uma
das maiores concentrações de sítios catalogados com pinturas rupestres do mundo", diz a arqueóloga Niède Guidon, 72, diretora
da Fundham e a primeira pesquisadora a estudar os desenhos, na
década de 1970.
Os grafismos ajudam a reconstituir a vida dos grupos humanos
que moraram no Brasil em tempos ancestrais, cobrindo aspectos
da vida cotidiana -como a caça,
a morte e o sexo- e cerimonial.
Guidon defende uma das teorias mais controversas sobre a
ocupação humana da América e
defende a chegada do homem à
região há cerca de 50 mil anos
-aceita-se hoje que a idade máxima seja 20 mil. A discussão gerou réplicas e tréplicas acaloradas
em revistas científicas e um consenso ainda não foi obtido.
Ameaças variadas
De acordo com a arqueóloga,
outras pinturas correm risco de
desaparecer. Ela cita como exemplo o norte do parque, onde há
desenhos catalogados, porém
ainda não plenamente estudados.
Só os sítios catalogados dentro do
parque são 360.
"Essa região tem sítios onde
nunca pudemos trabalhar. Para
fazer a conservação, a equipe precisa levar produtos químicos, andaimes, escadas, comida, água.
Mas não há estrada, só uma picada de 15 km, 16 km", afirma.
Antigos moradores não reconhecem o parque, pois ainda não
foram indenizados pelo governo
federal, e não permitem que estradas sejam construídas ali.
Além da ação humana, os sítios
correm perigo por causas naturais. Erosão e água infiltrada destroem os desenhos se não houver
cuidado contínuo. A caça das aves
reduziu a quantidade de predadores de insetos -como a maria-pobre, que constrói ninhos de argila misturada com saliva- e de
roedores cujas fezes se petrificam
no semi-árido sobre as pinturas.
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