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Micro/Macro
O olho biônico
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
É bem verdade que nem sempre isso é
claro, mas o objetivo mais fundamental da ciência e de suas aplicações
tecnológicas é aliviar o sofrimento humano. Essa mensagem se perde, muitas
vezes, devido às aplicações científicas
que fazem parte do seu lado sombrio.
Exemplos não faltam, do uso das tecnologias nuclear e bioquímica em armas
de destruição de massa até efeitos causados pela industrialização, como a poluição e o efeito estufa. Hoje, para variar um
pouco, gostaria de abordar a ciência do
bem. Em particular, alguns dos avanços
que vêm sendo realizados no campo da
visão artificial. Por incrível que pareça, o
olho biônico não é mais apenas assunto
de filmes de ficção científica.
Dos muitos males que afligem a humanidade, a cegueira é um dos mais terríveis. Quem leu o livro "Ensaio sobre a
Cegueira", de José Saramago, sabe até
que ponto a sociedade se desintegra
quando perde coletivamente a visão.
(Claro, a intenção de Saramago era metafórica e não literal. De qualquer modo,
as consequências são bastante óbvias.)
Como disse uma voluntária da pesquisa realizada por dois médicos americanos, Mark Humayun e Eugene de Juan,
ambos trabalhando na Universidade do
Sul da Califórnia em Los Angeles: "Eu tinha de pedir a alguém para me levar ao
banheiro quando estava em um restaurante. Ou, se eu deixasse minhas chaves
ou dinheiro caírem no chão, eu tinha de
me pôr de quatro e apalpar o chão até encontrá-los". É a perpétua escuridão.
Essa voluntária sofre de retinite pigmentosa, uma doença que deteriora progressivamente a retina até causar a cegueira completa. O trabalho de Humayun e De Juan consiste em reproduzir artificialmente o conjunto de operações
executadas pelo olho humano ao captar
imagens e transformá-las em impulsos
nervosos, que são transmitidos pelo nervo óptico até o cérebro. O desafio é que o
olho humano é uma máquina absolutamente fantástica.
A retina funciona mais como um computador do que como uma câmera. Os
seus 130 milhões de células especializadas, chamadas cones e bastonetes, registram a luz comprimindo-a em um sinal
analógico que é então transmitido digitalmente pelos mais de 1 milhão de neurônios do nervo óptico até o cérebro, onde a imagem é recriada.
Cada neurônio pode transmitir 200
pulsos por segundo. Portanto, um olho
pode enviar 200 megabits de informação
por segundo ao cérebro, 4.000 vezes mais
do que um modem comum, dos usados
hoje para conexão à internet. Claro que
reproduzir algo com essa complexidade,
capaz de gerar os detalhes e as cores que
enxergamos normalmente, é impossível.
Mas os primeiros olhos biônicos, mesmo
que primitivos, começam já a dar grandes esperanças àqueles que sofrem de retinite pigmentosa e, possivelmente, outros tipos de cegueira.
Humayun e De Juan criaram uma rede
com 16 eletrodos, que eles fixam cirurgicamente à retina do paciente. Esses 16
eletrodos fazem o papel de bastonetes e
cones. Os eletrodos têm fios ultrafinos,
implantados sob a pele, que são ligados a
um pequeno disco magnético preso
atrás da orelha do paciente. A outra parte
do equipamento consiste em um par de
óculos com uma câmera de vídeo em miniatura no seu centro.
A câmera está ligada a um computador
do tamanho de uma carteira de bolso,
que tem uma pequena antena afixada sobre o disco magnético atrás da orelha do
paciente. Quando o paciente põe os óculos, a câmera capta a imagem, que é
transformada pelo computador em impulsos elétricos. Esses impulsos são então emitidos pela antena como ondas de
rádio até o disco magnético, estimulando os eletrodos implantados na retina do
paciente. Ou seja, o dispositivo recria
primitivamente os impulsos elétricos
que são transmitidos através do nervo
óptico até o cérebro.
Alguns pacientes, mesmo com essa rede de apenas 16 eletrodos, conseguem
distinguir objetos grandes, janelas abertas, portas fechadas ou carros na rua. O
objetivo é aumentar o número de eletrodos, de uma rede 4 por 4 (os 16 atuais)
para uma de até 32 por 32 (1.024 eletrodos). Isso será suficiente para que o paciente possa ler e reconhecer rostos de
pessoas. E transformar a perpétua escuridão em memória.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"
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