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Ciência em Dia
Ferveção na "Science"
Marcelo Leite
editor de Ciência
Aqueles que ainda acreditam que a
ciência natural revela verdades objetivas e inquestionáveis devem ficar
mais atentos para as retratações de artigos científicos, que raramente ganham a
mesma publicidade. Um caso recente, envolvendo uma droga recreacional popular entre jovens (ecstasy) e uma revista especializada norte-americana de renome ("Science", www.sciencemag.org),
oferece o contra-exemplo perfeito para
essa fé descabida na pesquisa.
O trabalho do grupo de George Ricaurte, da Universidade Johns Hopkins
(EUA), era óbvia e jornalisticamente
sensacional: em 27 de setembro de 2002,
afirmava que o ecstasy (metilenodioximetanfetamina, também conhecida como MDMA) destruía neurônios produtores de um mensageiro químico fundamental, a dopamina, do mesmo tipo cuja
destruição provoca o mal de Parkinson.
O estudo teve repercussão no mundo todo. Ganhou destaque na página de ciência da Folha e chamada na capa.
Ocorre que o trabalho da Johns Hopkins trazia embutido no experimento
um erro primário. Os fornecedores haviam trocado os rótulos dos frascos, o
que fez com que os macacos-cobaias recebessem injeções de uma outra droga, a
metanfetamina ("speed"). Ou seja, a destruição de neurônios dopaminérgicos
havia sido causada pela metanfetamina,
um efeito já conhecido, e não pelo ecstasy, o efeito inédito e sensacional.
Após detectar o erro, os autores fizeram a única coisa cabível: publicar uma
retratação. Saiu na seção de cartas da
"Science" dia 12 de setembro passado,
um ano depois do trabalho original.
A retratação decerto não quer dizer
que o ecstasy seja inofensivo, como de fato não é (entre outras coisas, causa alterações sérias na temperatura do corpo).
Só quer dizer que é improvável a epidemia de Parkinson prevista por jornais e
revistas do mundo inteiro.
Há pesquisadores achando que quem
errou, e feio, foi a "Science". Antes mesmo de vir a público a cincada de Ricaurte
e sua trupe, dois cientistas britânicos
-Colin Blakemore e Leslie Iversen-
haviam procurado os editores da revista
para criticar o estudo.
Segundo a revista "The Scientist"
(www.the-scientist.com), eles apontaram ao editor da "Science", Donald Kennedy, uma série de "discrepâncias" que
deveriam ter impedido a publicação do
artigo original. Kennedy lhes teria oferecido publicar um comentário crítico,
possibilidade descartada pelos britânicos, para quem a iniciativa de investigar
o caso cabia à própria "Science".
Uma das deficiências do artigo original, segundo Blakemore e Iversen, estava
nas doses, supostamente equivalentes às
empregadas pelos fervedores das raves.
Ricaurte, no entanto, havia injetado o
"ecstasy" -quer dizer, metanfetamina- nos macacos, quando a moçada os
toma por via oral. No experimento, portanto, a quantidade da suposta MDMA
disponível para o cérebro seria proporcionalmente maior, porque injetada (cai
diretamente na circulação, sem ter de
passar pelo aparelho digestivo).
Para os britânicos, é o tipo de detalhe
que deveria ter sido detectado pelos revisores científicos do artigo, mas não foi
(por isso eles defendem que a "Science"
publique os pareceres dos revisores).
Afinal, trata-se de uma verificação trivial.
A Folha, por exemplo, foi ouvir a opinião do psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, que apontou o mesmo problema: a
mudança de ingestão para injeção.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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