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São Paulo, domingo, 12 de outubro de 2003

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Ciência em Dia

Ferveção na "Science"

Marcelo Leite
editor de Ciência

Aqueles que ainda acreditam que a ciência natural revela verdades objetivas e inquestionáveis devem ficar mais atentos para as retratações de artigos científicos, que raramente ganham a mesma publicidade. Um caso recente, envolvendo uma droga recreacional popular entre jovens (ecstasy) e uma revista especializada norte-americana de renome ("Science", www.sciencemag.org), oferece o contra-exemplo perfeito para essa fé descabida na pesquisa.
O trabalho do grupo de George Ricaurte, da Universidade Johns Hopkins (EUA), era óbvia e jornalisticamente sensacional: em 27 de setembro de 2002, afirmava que o ecstasy (metilenodioximetanfetamina, também conhecida como MDMA) destruía neurônios produtores de um mensageiro químico fundamental, a dopamina, do mesmo tipo cuja destruição provoca o mal de Parkinson. O estudo teve repercussão no mundo todo. Ganhou destaque na página de ciência da Folha e chamada na capa.
Ocorre que o trabalho da Johns Hopkins trazia embutido no experimento um erro primário. Os fornecedores haviam trocado os rótulos dos frascos, o que fez com que os macacos-cobaias recebessem injeções de uma outra droga, a metanfetamina ("speed"). Ou seja, a destruição de neurônios dopaminérgicos havia sido causada pela metanfetamina, um efeito já conhecido, e não pelo ecstasy, o efeito inédito e sensacional.
Após detectar o erro, os autores fizeram a única coisa cabível: publicar uma retratação. Saiu na seção de cartas da "Science" dia 12 de setembro passado, um ano depois do trabalho original.
A retratação decerto não quer dizer que o ecstasy seja inofensivo, como de fato não é (entre outras coisas, causa alterações sérias na temperatura do corpo). Só quer dizer que é improvável a epidemia de Parkinson prevista por jornais e revistas do mundo inteiro.
Há pesquisadores achando que quem errou, e feio, foi a "Science". Antes mesmo de vir a público a cincada de Ricaurte e sua trupe, dois cientistas britânicos -Colin Blakemore e Leslie Iversen- haviam procurado os editores da revista para criticar o estudo.
Segundo a revista "The Scientist" (www.the-scientist.com), eles apontaram ao editor da "Science", Donald Kennedy, uma série de "discrepâncias" que deveriam ter impedido a publicação do artigo original. Kennedy lhes teria oferecido publicar um comentário crítico, possibilidade descartada pelos britânicos, para quem a iniciativa de investigar o caso cabia à própria "Science".
Uma das deficiências do artigo original, segundo Blakemore e Iversen, estava nas doses, supostamente equivalentes às empregadas pelos fervedores das raves. Ricaurte, no entanto, havia injetado o "ecstasy" -quer dizer, metanfetamina- nos macacos, quando a moçada os toma por via oral. No experimento, portanto, a quantidade da suposta MDMA disponível para o cérebro seria proporcionalmente maior, porque injetada (cai diretamente na circulação, sem ter de passar pelo aparelho digestivo).
Para os britânicos, é o tipo de detalhe que deveria ter sido detectado pelos revisores científicos do artigo, mas não foi (por isso eles defendem que a "Science" publique os pareceres dos revisores). Afinal, trata-se de uma verificação trivial. A Folha, por exemplo, foi ouvir a opinião do psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, que apontou o mesmo problema: a mudança de ingestão para injeção.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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