|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NEUROCIÊNCIA
Experimento de brasileiro nos EUA indica que primatas podem sentir membro artificial como se fossem seus
Macaca-ciborgue "incorpora" braço-robô
MARCELO LEITE
EDITOR DE CIÊNCIA
Duas fêmeas de macaco reso
(Macaca mulatta), Aurora e Ivy,
figuram entre as pioneiras de um
novo tipo de ser vivo, os organismos cibernéticos, híbridos de animal e máquina. Numa palavra, ciborgues -que serão apresentados ao mundo amanhã por um
brasileiro, Miguel Nicolelis.
A façanha de Aurora e Ivy foi
mover um braço robótico apenas
com o pensamento. Melhor dizendo, somente com seus neurônios, dezenas ou centenas deles,
ligados por microeletrodos a uma
rede de computadores (veja quadro à esq.) do Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke,
na Carolina do Norte (EUA).
Como as macacas param de mexer o próprio braço, dispensando
o uso do "joystick" com que haviam sido treinadas, os neurocientistas concluíram que elas haviam "incorporado" o sistema
técnico em sua imagem cerebral,
literalmente integrando-o ao próprio "self" -ou seja, à representação de si mesmas.
De certo modo, é o inverso do
que ocorre com pessoas amputadas, que continuam a sentir um
membro-fantasma. "É como se
ela dividisse o cérebro, como se
adicionasse um terceiro membro,
de verdade", explica Nicolelis.
Imagine agora o que isso abre
de possibilidades para próteses
inteligentes, como mãos, braços,
pernas ou cadeiras de rodas que
possam -um dia- vir a ser comandadas pela própria pessoa.
O advento das macacas-ciborgues vem anunciado com um artigo de pesquisa, e não com literatura de ficção, porque é no campo
da tecnociência que essa quimera
antiga está tomando corpo. Até o
veículo é uma boa nova, a revista
"PLoS Biology", publicada eletronicamente e de acesso aberto
(biology.plosjournals.org), que
também estréia amanhã.
O cientista brasileiro dedica o
trabalho, feito com José Carmena
e outros sete colegas, ao neurocientista Cesar Timo-Iaria, seu
mentor na USP, onde estudou.
O experimento descrito na revista, orçado em cerca de US$ 3
milhões, é parte de um projeto de
cinco anos e US$ 26 milhões
-mais do que as verbas anuais
de vários órgãos de fomento à
pesquisa no Brasil. Em novembro
de 2000, Nicolelis causara sensação com a notícia de que seu grupo havia conseguido fazer o pensamento de macacos-coruja mover outro braço robótico. Em fevereiro do ano passado, a equipe
viria a repetir o feito com macacos
resos, cujo cérebro é mais próximo do de seres humanos.
Com Aurora e Ivy, usou-se um
circuito fechado de controle. Nos
outros estudos foi empregado um
sistema aberto. A diferença é que,
no primeiro caso, o animal recebe
informações de controle do próprio sistema que está sendo controlado, fechando o círculo. As
imperfeições dos movimentos decorrentes das limitações do braço
mecânico, por exemplo, são "traduzidas" visualmente.
O cursor na tela de computador
à frente da macaca (que nunca vê
o robô) se torna independente do
"joystick" quando o experimento
passa para o modo de controle cerebral. Começa a refletir o movimento efetivamente executado
pelo membro mecânico com base
apenas nos sinais cerebrais interpretados pelos sete modelos matemáticos no computador.
As pequenas diferenças entre o
que faz na barra do "joystick" e o
que vê acontecer na tela logo levam a macaca a perceber que há
algo de errado. Por tentativa e erro, tenta compensar mentalmente
as diferenças, até se dar conta de
que o pensado é mais eficaz que o
executado -e larga a mão.
O pesquisador, palmeirense
agoniado, sempre que pode recorre a metáforas do futebol: "A
bola vira uma extensão do pé",
diz. Para Nicolelis, o diferencial da
espécie humana não está só a faculdade de construir ferramentas,
mas sobretudo sua capacidade de
usá-las com destreza crescente.
"O "self" não é delimitado só pelo
corpo biológico, mas também pelas ferramentas."
Macacos como o reso alcançam
uma eficiência de 90% em tarefas
complexas (como a de número 3,
sequencial). "Ninguém chega a isso", afirma Nicolelis, citando o escore de um grupo concorrente
que trabalhou com amostragens
de apenas 18 neurônios: 50%.
Para aumentar essa eficiência, a
equipe tem um novo experimento preparado para começar em
dez dias. Além do "feedback" visual na tela, o animal contará com
dicas táteis do robô. Virão por intermédio de uma placa vibratória
na altura do ombro (onde muitas
pessoas paralisadas mantêm alguma sensibilidade).
De todo modo, Nicolelis afirma
que é difícil chegar a 100% de eficiência. "O que importa é que o
paciente consiga fazer o movimento na maior parte das vezes",
diz o neurocientista.
A aplicação plena em seres humanos ainda está longe, mas ao
menos Nicolelis e grupo já foram
capazes de demonstrar que o aparato pode funcionar tão bem
quanto nas fêmeas Aurora e Ivy.
Durante cirurgias cerebrais para tratar de pacientes com mal de
Parkinson, foram implantados 32
microeletrodos do mesmo tipo
em seus cérebros, por dez minutos, para amostrar o comportamento de meia centena de células.
Pediu-se aos pacientes que fizessem alguns movimentos e registrou-se a atividade dos neurônios.
A conclusão é que os modelos parecem ser igualmente eficientes.
Muitos anos ainda passarão antes que uma pessoa possa mover
pernas ou braços biônicos só com
o pensamento. Mas os primeiros
passos -ou gestos- já foram
dados pelas macacas Aurora e Ivy.
Texto Anterior: Ciência em Dia: Ferveção na "Science" Próximo Texto: Neurocientista quer instituto em Natal Índice
|